sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Um novo olhar - MARIA FERNANDA MELGAÇO

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
Saibam mais do projecto Mulherio das Letras Portugal neste link
Conheçam a IN-FINITA neste link

Ouviu a porta metálica bater atrás de si. Lembrou-se, incrédula, daquela última vez que passara ali, naquele corredor de azulejos brancos e azuis: scarpin preto envernizado, camisa de seda pérola, batom vermelho, cabelo escovado. Quem a vira passar naquela vez, com certeza, se espantaria de saber que aquela mulher fugia dos próprios olhos no espelho. Toda manhã, a mesma perseguição: seus olhos, carregados de tristeza, fugiam da recriminação daquele olhar refletido. Sofria. Mesmo com todas as suas conquistas: professora universitária aos trinta anos. E todos os seus privilégios: mulher branca, de classe média.
Passaram-se dois anos desde aquele dia. O dia em que procurou a morte para fugir do sofrimento. Quem só vira o scarpin, a camisa, o batom, o cabelo, deixara passar os olhos, fixos nos azulejos, ausentes de vontade de viver. Mas a morte... a morte é perversa. Ela escolhe quem levar consigo e quem deixar para trás, que foi o seu caso. Não sem marcas.
– Inválida eu? – murmurou.
Dois anos que não pisava ali. E, agora, que já trazia vida nos olhos, autoconfiança, projetos futuros... não mais a queriam. De fato, a Academia fecha portas para mulheres, mas, com um pouco de insistência e ousadia (leia-se competência e feminismo), ela conseguira entrar há alguns anos. Agora? Depois de tratar-se física e psicologicamente, após o ocorrido, ela era uma nova mulher. Estava certa de que a vida tinha valor para si. Porque, para o mundo, ela nada mais valia?
Lembrou-se do peso que sentira naquele dia, há dois anos. Da dificuldade que enfrentava para se levantar todos os dias. Das máscaras que precisava vestir para omitir a tristeza de seus olhos. Do olhar sempre voltado para o chão. Agora estava livre das máscaras. Libertara-se dos grilhões. Porém, para alguns olhares, o valor de uma mulher está na aparência. Antes, viam-na como jovem, bonita, bem sucedida. Agora? Agora ela era inválida. Não só as portas batiam atrás de si, como construíam muralhas para que ela nunca mais pisasse na Academia.
Não quis desistir. Desta vez, não estava sozinha. Sabia que, agora, buscaria seus olhos refletidos no espelho. Sabia que eles se fitariam longamente. Que eles a encorajariam. Porque, diferente do que ouvira naquela sala, de onde saíra, ela não era inválida! Sua vida valia muito: valia tudo. Olhou para trás, a porta metálica fechada. Viu seu reflexo nela. Buscou seus olhos, lá estavam: cheios de vida. Agora, ela teria um longo caminho pela frente. Sabia que não seria fácil. Também sabia que, enfim, tinha forças para seguir nele. Forças para olhar para frente, buscar olhos amigos nos corredores em que passasse. Era uma mulher com deficiência, mas, diferente daquele dia, há dois anos, não lhe faltava nada!

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

Sem comentários:

Enviar um comentário

Toca a falar disso