terça-feira, 28 de setembro de 2021

Paredes do tempo - PRISCILLA RODRIGUES

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
Saibam mais do projecto Mulherio das Letras Portugal neste link
Conheçam a IN-FINITA neste link

Uma parede descascada é como a voz do tempo dizendo que passou por ali.
O tempo que, por vezes, passa rápido e por outras, lento, mostra tudo o que existe e que por vezes insistimos em não querer ver. O tempo, linearmente criado entre o passado, o presente e o futuro, desenha por onde passa as marcas do que se viveu, ou do que se deixou de viver.
Naquelas paredes descascadas, na parte de fora da casa da minha vó, durante a minha infância, podia-se ver o tempo. O tempo da casa, da família e de cada integrante que por ali passou. O tempo dos meus avós, jovens, construindo aquelas paredes e, aumentando um cômodo, a cada filho que nascia; o tempo do meu pai, que nasceu, cresceu e viveu ao redor daquele lugar; o tempo que foi meu, enquanto por ali estive.
Uma casa de bairro, em cidade do interior, sem zelador ou síndico. Casa com varanda e portão, de quintal com terra, com roseiras que cercavam e delimitavam o espaço, ensinando que dali para a frente era a rua. Suas paredes expostas contavam que havia vivido dias de sol, mas também muitos de chuva.
Eu prefiro me lembrar dos dias de sol, quando corria pelo entorno da casa fazendo barulho e espalhando sorrisos. Prefiro me lembrar de quando parava a brincadeira para arrancar pequenas lascas daquelas paredes, criando no meu tempo, a marca da criança feliz que habitou aquele presente, hoje passado.
Às vezes acontecia de o tempo nublar, expondo de forma mais evidente o cinza do cimento por baixo da pintura que esfolava. Nesses dias, olhava para as imagens que ali se formavam imaginando rostos e paisagens que me levavam para o mais belo futuro que conseguia criar.
Mas, embora minhas memórias prefiram me levar para os dias de sol, eram os dias de chuva os que mais marcavam aquelas paredes. Toda a água que escorria, infiltrava através de suas ranhuras, entranhando tudo aquilo que vinha de fora, evidenciando e escancarando as impressões deixadas pelo tempo.
Eu ainda estava por lá quando as paredes foram consertadas. Foram cobertas por revestimento impermeável, frio e duradouro, protegendo-as no futuro, de novas formas a serem reveladas pelos anos que ainda viriam. Apagando por fora o passado, que continuava marcado por dentro.
Hoje o tempo continua passando por aquelas paredes, sem as descascar e sem as marcas que minha presença poderia deixar.
Passou.

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

Sem comentários:

Enviar um comentário

Toca a falar disso