quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Metrópole - RÔ CARMO

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O ano era 1983, me lembro bem. Estudávamos, as quatro irmãs, em um colégio no centro da cidade, e tínhamos que subir a imensa e famigerada rua da Bahia diariamente pra chegar à escola. Minha irmã Meirinha, alguns anos mais velha, segurava minha mão; e isso me conferia uma soberba liberdade: presa assim, elevava os olhos acima dos imensos edifícios, abria as asas. À iminência de qualquer perigo, ela apertava minha mão e eu aterrissava em terra firme. Acontecia largas vezes ao longo do trajeto.
Entanto, no meio do caminho, havia O cinema. Sim, “O”, pois não conhecia nenhum outro. Ganhava meu olhar de pronto! Os cartazes eram janelas pra um mundo que nunca soubera, mas já amava. Era uma sugestão diária, que se insinuava na ida para a escola e se concretizava na volta. Nomes de filmes dançavam na minha cabeça, cartazes suscitavam histórias e o resto eu resolvia só, imaginando. Enquanto desenrolava a tarde, em meio às aulas, construía, a partir do pouco que capturara dos cartazes com meus olhares oblíquos, todo o resto necessário: cenário, roteiro, música.
Certo dia do ano de 83, outono/inverno, por certo_ ainda sinto a mão fria de minha irmã a guiar-me_ meu olhar procura, como de hábito, o refúgio de sempre. Nesse átimo de segundo, já eu antecipava o sorriso, sabendo que veria os cartazes de “Tootsie” estampados nos dois batentes das janelas do cinema. Não, não foi isso que vi. E, pela primeira vez, quem guiava a caminhada era eu, puxando veementemente a mão de minha irmã, forçando-a a atravessar a rua para ver de perto o que seria o fim de meus sonhos? O prédio do cinema estava em frangalhos: tapumes por todos os lados, escombros aqui e ali, passantes. Como podiam passar sem perceber que “O” cinema_ e isso abarcava, na minha meninice, todos os cinemas do mundo_ vinha abaixo?
E pensava: Não tive a chance! Imaginei incontáveis vezes minha entrada triunfal pela porta da frente, supondo seguramente que veria o melhor filme de todos os tempos; mas não tive a chance. Mais que isso: roubaram-na de mim.
Como poderia, depois desse desacontecimento, seguir Bahia até a escola? O que me esperaria na volta? Naquele dia, como nos próximos que se sucederam, testemunhei a vagarosa demolição do Cine Metrópole. Nenhum cartaz pra instigar minhas histórias, nenhuma música pairando sobre a cena inventada. Cena? Que cena? E a cada olhar lançado para os lados do prédio (art déco), cada dia menor; me assaltava uma tristeza funda, e uma dúvida incessante tamborilava em mim: Seria o cinema só ilusão?

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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