terça-feira, 28 de setembro de 2021

Demasiado ser - FARAH SERRA

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Eis então que estou cá, na fase do meio, aos 40. Existindo em pleno contraste com o modo no qual vivi os meus 20, 30 anos, quando sabia muito bem o que queria fazer, onde pretendia ir e era realmente boa em arrancar elogios. Hoje, surpreendentemente, vivencio incertezas e medos. Além de um desejo irreprimível de conquistar algo, de marcar um ponto, de deixar uma pegada, de me sentir viva, útil, desejada.
Não sei bem como, mas não tenho dúvidas de que foi nesse tempo finito de 40 anos, em que ocorreram um número infinito de situações (até mesmo coisas que eu não acreditava que poderiam acontecer comigo), que me tornei quem sou hoje.
Calcular a minha vida a essa altura é inquietante. É como se tudo tivesse se tornado aquilo que, em algum momento, imaginei que seria. De criança, tinha como certo que um dia me tornaria mãe. Não era um verdadeiro sonho, simplesmente era assim que deveria ser. Um pouco como encontrar um marido companheiro, um trabalho que gostasse e a minha independência financeira. A inquietude está no fato de que tudo é muito diferente daquilo que imaginei. A única conclusão a que chego é que evolui com a idade. Certamente prosperei. Evolui como pessoa, mudei minha personalidade. Talvez seja mesmo a maturidade que coloque o nosso pé no mundo real. Complexo. Entranhado.
“Mas você deve por isso de lado agora, pois o dever te chama. [...]. Seu povo precisará da sua força e liderança. Eu já vi três grandes monarcas serem derrotados pelo fracasso em separar satisfações pessoais do dever. Você não deve se permitir cometer erros similares. E, ao guardar o luto pelo seu pai, você deve guardar luto por outra pessoa, Elizabeth Mountbatten, pois ela agora foi substituída por outra pessoa, Elizabeth Rainha. As duas Elizabeths entrarão frequentemente em conflito. O fato é que a Coroa deve vencer. Deve sempre vencer.”
Essa foi a carta que Lilibet (a Rainha Elizabeth II) recebeu da Rainha Mary (sua avó), antes de assumir o seu reinado no seriado The Crown. Eu a trouxe aqui porque, poucos anos depois de me tornar “Rainha da minha família expatriada”, comecei a sentir o danado peso dessa Coroa e a perceber o quanto as duas Farahs estavam se gladiando – sim, mais do que em conflito, elas estavam em pé de guerra.
Claro que isso não aconteceu de uma noite para a outra, eu pressentia que as coisas começavam a cambalear. Mas, no início, era uma oscilação tão leve, que eu, totalmente presa em construir a minha identidade, não dei a devida importância.
Acho que, de fato, só percebi a grandeza dessa transformação sistêmica quando me tornei mãe. Na complexidade da minha relação mãe e filha, me dei conta de que acabamos sabendo mais sobre nossos filhos do que sobre nós mesmos. Eu vejo a minha filha por inteiro, vejo até mesmo a parte que nem ela mesma vê, e ela, imagino eu, também vê essa minha parte oculta, que eu não vejo. Bem como dizem, ser mãe é lidar com as próprias sombras.
Sincronicamente a isso, aquele controle, que saboreei aos 20 anos, de ter poder sobre tudo o que acontece, me foi usurpado. Repentinamente, eu não encontrava mais aquela minha perfeição, física e moral, e muito menos aquela minha confiança desmesurada de que eu estava à altura das minhas batalhas e sonhos. Perdi a mão de mim. Inesperadamente, encontrei-me sem saber como me posicionar diante dos meus propósitos mais holísticos – pessoal, familiar, profissional; de vida, no mundo, no Universo.
Como afronta, taurina que sou, comecei a levar a minha vida muito a sério. E viver começou a se tornar um fardo difícil de se carregar. O cansaço – físico mental e emocional – estava imperando. Nesse atoleiro do viver como uma mulher forte, comecei a sobreviver sobrecarregada de todos os estigmas impostos à minha geração. Eu estava me transformando em uma pessoa que não queria ser. E quanto mais me afundava nesse lamaçal, sujo e pegajoso, mais eu ouvia o grito da minha filha pedindo por uma mãe inteira. Do meu marido, almejando por uma esposa inteira. Do meu trabalho, cobrando uma profissional inteira. Enquanto eu implorava por uma Farah inteira.
A angústia desse caminhar estava tão grande que, visando minha salvação, meu instinto feminino desviou a rota e adentrou no silêncio. Mergulhei em mim. Na ausência do barulho, encarei o vazio, a falta de respostas imediatas. Nessa jornada de autoconhecimento desvendei um grande mistério: o meu poder de cocriação é muito forte, eu já conquistei praticamente tudo que almejei. Todos os meus pensamentos, sentimentos, crenças, germinaram dos meus sonhos e floresceram justamente aqui, onde estou agora, diante desse pedaço de papel em branco que espera por uma nova história.
Honrei, celebrei, agradeci e aceitei que estava de frente a mais um ponto de mutação em minha trajetória. O momento era mais que oportuno para mudar algumas coisas e tudo começou no meu próprio modo de pensar. Eu não precisava do mundo externo para realizar uma mudança. Não precisava que alguém me salvasse, que me amasse ou me levasse daqui. Era eu mesma, a pessoa que estava esperando. Só precisei escolher como reagir àquela realidade e me colocar a serviço de tamanha transformação.
Tornou-se uma questão de honra resgatar a Farah, a alegria, que há em mim. Entrei nessa batalha de peito aberto, recuperei a minha velha companheira – a coragem, e me aliei à positividade. Envolta nessa tríplice-aliança firmei um acordo onde declarei que jamais o dever irá imperar sobre o meu bem-estar pessoal, decretei resistência às adversidades, assegurei que só farei isso com a leveza, a despreocupação diante do frenético ritmo da vida e sem duvidar, em momento algum, de que sou muito mais do que me consinto ser. Então, comecei a promover um rearranjo, uma reacomodação interna para aceitar as partes boas e ruins de ser tudo o que sou.

O caminho é simples, mas profundo. Existe o tempo das coisas e o meu exercício é me lembrar disso todos os dias. O tempo natural das coisas é um tempo diferente, é o tempo das grandes transformações.

EM - UNIVERSO FEMININO - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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