segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Máscaras - NATACHA MAGALHÃES

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O resto do líquido no fundo da taça desafiava-a. Aproximou a taça dos lábios e inclinou-a, deixando que a sobra escorresse pela sua garganta. Olhou para a garrafa vazia e sacudiu os ombros, como se pedisse desculpas. Pedia desculpas por ser fraca, miserável. Desculpas por não saber lidar com coisas que todos diziam ser simples. Pedia desculpas por buscar alívio na garrafa, única forma de atenuar a dor que a consumia por dentro. Olhou-se ao espelho e o reflexo da sua imagem parecia debochar dela e da sua fraqueza. Olhou de novo e ensaiou um sorriso aberto. O mesmo que tinha de levar ao escritório e exibir o dia todo aos colegas e ao chefe. Tens um sorriso lindo, um candeeiro da alma. Que sabiam eles sobre luz e escuridão? Obrigou-se a entrar na banheira e deixou que a água do chuveiro escorresse da cabeça aos pés, esperando que essa fosse capaz levar pelo ralo os pensamentos mais nebulosos. A rotina de banhar-se e escovar os dentes era quase tortura, como quase tudo que fazia. Arrastou-se até ao quarto. Ultimamente locomovia-se assim. Obrigava os pés a se movimentarem. Também naquilo, os colegas reparavam. Aqueles estafermos reparavam em tudo! Cegos na mesma! Preocupados que estavam em discorrer sobre as suas vidinhas e vaidades viviam qual zarolhos em terra de cegos.
Tirou do guarda-fato o traje do dia. Como sempre se vestia com esmero, quase como as superstars das revistas de tendências de moda. Fazia questão que assim fosse. Tinha de ser algo que arrancasse elogios e olhares de inveja ou luxúria. Lutou com o cabelo rebelde, prendendo-o à nuca. Escolheu uns sapatos de salto alto, que não destoassem do conjunto e dedicou alguns minutos à tarefa mais complicada. A maquilhagem era a camuflagem perfeita para esconder tudo. Com a base e um pouco de pó e lá se iam as olheiras e as rugas nascidas das noites não dormidas e da ansiedade que a abocanhava. Arrematava com um batom, sempre uma cor viva para embelezar ainda mais o sorriso teatral. Estava pronta. Altiva, poderosa. Ninguém suspeitaria de nada. Ela era a imagem perfeita do bem-estar e da felicidade. Quando regressasse, mergulharia de novo a alma e coração na dor. E quem sabe mandaria tudo àquela parte e desfazia-se daquela existência de faz de conta.
Evelyn era seu nome. No bilhete de identidade era Eveline. Mas ela fazia questão de se apresentar como Evelyn e de assim ser chamada por todos. Soava a nome francês, très chic. Era lindíssima, desde pequenina estava habituada a ouvir elogios à sua aparência física. Corpo escultural, a custa de horas passadas em ginásios e aqueles jejuns intermitentes da moda, que a obrigavam ficar sem comer por horas. Estava sempre bem vestida, de salto alto, maquiagem perfeita. Tudo nela era perfeito. Até a simpatia era perfeita: sorria com todos, tinha sempre palavras amáveis, era doce, meiga, atenciosa. Desdobra-se em atenções para todos. Sim. Evelyn era perfeita. E todos no escritório adoravam-na. Pelo menos assim parecia.
Marta vinha observando Evelyn. Não poderia ser sempre assim aquela miúda, ninguém era assim, sempre perfeita, sem desmanchos, sempre de bem com todos. Havia ali peças desencaixadas. Marta já vinha reparado no nervosinho miúdo de Evelyn, espelhado nos ligeiros tremores das mãos quando martelarem o teclado. Havia também aqueles poemas melancólicos que a moça publicava na sua rede social. À Marta aquilo soou recado. Tinha quase certeza de que Evelyn vivia sob uma carapaça. Num desses dias, Marta viu a máscara a cair-lhe. Foi num momento em que todos tinham saído para o almoço. Não reparando que a colega havia ficado. Evelyn debruçou-se sobre a secretária, deixou cair os ombros sempre eretos e suspirou. Foi como se o mundo todo lhe pesasse nos ombros, naquele instante. Depois, uma pequenina lágrima escapou-lhe dos olhos e rolou pela linda face, antes que Evelyn a esmagasse com a ponta do indicador. Mas depois vieram outras. E mais outras. Correu para a casa de banho.
Ontem, Evelyn não veio trabalhar. Também não avisou que não viria. Ninguém se ralou, não era a primeira vez. E as ausências eram agora mais constantes, sempre justificadas com mal-estar e idas ao médico.
Hoje o escritório está de luto. Ninguém queria acreditar. Demasiado chocante para se acreditar. Marta recusou-se a fazê-lo. Um sentimento de culpa germinava dentro dela. Evelyn morreu. Melhor, matou-se. A mãe encontrou-a esvaída em sangue, pulsos cortados. Ao lado, um bilhete “Hoje liberto-me. Finalmente serei livre. Cansei de ser perfeita. Mas como viver nesse mundo, se ninguém quer imperfeições?"

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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