quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Marias - ISA MARTINS

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– A sociedade diz que tenho que te amar. Mas nunca consegui. E sei que a ausência do meu carinho provocou o mesmo em você.
Durante as minhas sete décadas, ouvi inúmeras vezes que toda mãe ama seus filhos. Mentira. Milhares delas mentem, para os outros ou para si. Há as que não amam a própria cria. E sou uma delas, Maria Clara.
Também nunca amei sua mãe, tios e primos. Odeio a maternidade. Ainda não me recuperei da violência de ter sido casada aos 10 anos.
Diziam que era a vida. Que vida? O que restou foi passar a minha existência usando o tão surrado vestido da hipocrisia. Tentei fingir amar filhos e netos. Fracassei. Não vou pedir perdão. Não sou culpada pelo o que não sinto.
– Vó, é seu aniversário. Vamos cortar o bolo? Agora somos só nós duas nessa vida. Então, a senhora pode me falar essas coisas na sala. Sua cozinha sempre foi muito quente. Estou suando aqui.
– Eu sempre quis estar em outro lugar, com outras pessoas, fazendo outras coisas.
– Então, vó, depois que eu for embora, nunca mais nos falamos. Está bem? Será o seu presente de aniversário. Só voltarei aqui se me ligar.
– Jura?! Sempre sonhei com uma vida só minha. Sem vocês.
Quando seu avô morreu, me senti livre. Mas a cada visita ou encontro familiar, a jaula em que passei a vida se abria e eu ficava dias lá dentro, apenas sobrevivendo, silenciosamente.
Maria Clara só voltou a ver a avó Maria Luísa quinze anos depois, no caixão. Após aquela conversa, sequer se falaram por telefone. Achou bom não ter de representar mais o papel de neta. Sempre foram estranhas, reconhecia. Sua avó materna era um gelo com todos da família.
A neta aproximou-se do cadáver enrugado. Acariciou os cabelos brancos. E lembrou-se daquela declaração socialmente proibida, que fez com que enxergasse Maria Luísa como mulher e não mais como avó. E ali, diante do quase centenário corpo que havia morrido aos 10 anos de idade, torceu para que ela tivesse aproveitado seus últimos e únicos anos de liberdade. Então, chorando, agradeceu baixinho por aquela única conversa de verdades.
– Vó, comecei a sentir saudade de você naquele mesmo dia, assim que abri a porta da minha casa.
Morreu a avó quando nasceram as duas Marias, ligadas pelo o que transbordou das palavras desencontro, sonho e nós.

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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