quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Entre tempos - ADRIANA MAYRINCK

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Imagens compõem-se em flashes de lembranças que me acompanham.
Vejo-me nos verões entre as praias do Rio de Janeiro e Recife e a obrigatoriedade de permanecer magra e bronzeada por todas as estações do ano. Uma ditadura e um aprisionamento que impunha a mim mesma no meu reflexo nos espelhos que atravessavam o tempo. Precisava nadar, caminhar, correr, andar de bicicleta para sentir que fazia parte do cenário, da vida e de mim mesma. Precisava estar rodeada de amigos, fazer compras todas as semanas, pois a cada saída era obrigatório uma roupa nova, precisava estar nos barzinhos, shows e lugares da moda, mergulhar no mar ou refugiar-me entre as montanhas, viajar todos os feriados, precisava ouvir muita música ( MPB, Bossa Nova, Samba e Rock), estar rodeada de amigos e viver intensamente. Enquanto os “meus heróis” morriam de AIDS. Do outro lado das fronteiras e mares, as notícias viam pela televisão ou jornais e tudo era tão distante, pensava e me preocupava apenas com o meu mundo, o meu país, o nosso futuro.

Participava ativamente das manifestações e passeatas que passavam pela minha janela em Copacabana nos anos 80 e 90, Diretas Já, Fome Zero, Fora Collor e achava que caminhando e gritando estava contribuindo para melhorias no meu país, tão amado e admirado. Vestia o verde e amarelo com imenso orgulho principalmente em tempos de Copa do Mundo ou Jogos Olímpicos. Assistia as corridas de Fórmula 1 com Ayrton Senna, e vibrava com estes atletas que tanto me representavam.

Seguia pela vida, passando as décadas, entre amigos, colegas e desconhecidos, sempre preocupada em dar algum recado, ajudar, contribuir para a melhoria do meio ambiente, da solidariedade humanitária, ou apenas, estender a mão a quem precisava. Trabalhei com jornalismo, turismo, literatura, marketing, vendas, eventos culturais, cinema e fui agente literária... Trabalhei muito... muito! Sem tempo para férias, fazia dos meus feriados dias sagrados e as pausas entre um trabalho e outro, também.

Os anos seguiam, em suas pequenas batalhas cotidianas. Na escola, na faculdade (duas e abandonadas por questões ideológicas), nos empregos e projetos que abraçava com entusiasmo e entrega. Contribuí muito em algumas empresas que ouvia as minhas ideias e aceitavam mudanças. Era tudo vivido ao extremo, o excesso de responsabilidade e cobranças que eu mesma exigia, esgotavam-me. Mas ia em frente com a determinação, a ilusão de que, em cada amanhecer o extraordinário poderia acontecer. Acreditava mesmo naquele futuro tão efêmero e inatingível que construí com os meus mais íntimos desejos e sonhos.

Tive uma filha, plantei algumas árvores, escrevi um livro, lutei, esbravejei, e cansei.

Realizei um sonho e todos os meus desejos.
Fui ao topo da euforia, paixão, entusiasmo e empurrada para o fundo de um precipício. Reagi, lutei, ultrapassei.

Abandonei a minha terra, a minha gente e parte de mim.

Atravessei o Oceano Atlântico e mudei para terras lusas, pois já não acreditava mais que seria capaz de acrescentar qualquer diferença entre tantas indiferenças, violências, injustiças, negacionismos, vaidades, egos inflados e a mim mesma. Ser uma gota naquela imensidão já não era o suficiente para movimentar as ondas. Cansei de nadar contra a correnteza e não conseguir chegar à praia – e permanecer.

Trouxe apenas uma mala.
As mãos dadas à minha filha.
E o coração novamente, apaixonado.
Me re-inventei em cada novo amanhecer.

Trabalhei ainda mais, criei pontes, laços, semeei sementes.
Dediquei todo o meu tempo e o meu fôlego a este meu novo mundo e tudo que estava inserido nele.

Sinto-me aconchegada.

Fiz o Caminho de Santiago da Compostela, e me vi plena, realizada, transbordante. Eu e os meus passos. Eu e os meus limites.
Eu e os meus desafios. Eu e as minhas lembranças. Eu a as minhas dores. Eu e o Inesperado. Eu e a vida, latente, pulsante ao meu redor.

De repente, percebi que contava os dias de confinamento, em uma pandemia que atingiu o mundo sem aviso prévio. Silenciosamente continuei a gritar ao perceber que a humanidade não quer compreender nada do que se passa. E eu ia me desconstruindo a cada estado de emergência decretado em Portugal. Para sobreviver, re-inventei a minha forma de estar, me esgotei em lives, vídeos e redes sociais. Trabalhei sem parar, criei parcerias, novos projetos e adiei outros. Os dias passaram a ter 30 horas e entre trocas e encontros fantásticos, desiludia-me também com as pessoas, com o mundo, com o ser humano.

Travei uma guerra interna, entre o antes e o agora, e sufoquei.
Faltou-me o ar, quase parei de respirar.
Deixei tudo o que havia negado, ignorado, esquecido, frustrado, adiado - me soterrar.

Entrei no meu mundo, confinada entre as diretrizes impostas
pelo governo e os limites impostos por mim.

Comecei a olhar tudo com distanciamento e cada vez mais
profundamente - para o meu lado de dentro.

Me permiti parar, me recolher, me deixar cuidar, desconectar.

Cheguei aos cinquenta anos sem festividades, sem o que havia planejado, sem o novo livro a ser lançado... Apenas um agradecimento intenso, emotivo e muito íntimo por tudo o que foi vivido em cada instante neste meio século. Não fazia sentido celebrar com tantas mortes ao meu redor. Adiei a vida. Mas o tempo não pára e o corpo mudou, reagiu, sofreu. Veio uma avalanche se sensações desconhecidas, alterações em todos os sentidos e me desfragmentei. No reflexo do espelho, permiti a invasão dos cabelos brancos, até então escondidos desde os meus vinte e tantos anos. Haviam mais dores, mais cansaços, menos questionamentos, mais resignação, mais paz, mais serenidade, mais amor. E muita contradição. Altos e baixos, numa dança só minha com todas as lembranças de como era e a constatação de quem sou agora.

Ainda não estou confortável com essa nova roupagem inevitável que a vida nos conduziu. O cotidiano sem movimento, sem o ir e vir aos eventos, sem os cafés, passeios, viagens e abraços é quase insuportável. Mas é necessário perceber que o mundo grita e nos pede socorro. E precisa de nós. E a responsabilidade é toda nossa.

Sinto falta do mar.
Sinto falta das minhas viagens.

E espero este tempo atípico permitir... Respirar!

Mas guardo a minha história em um relicário e de vez em quando, abro – para sorrir.

EM - UNIVERSO FEMININO - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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