terça-feira, 7 de setembro de 2021

É preciso ter fome para sobreviver - GRAÇA MARQUES

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Nas ruas desertas da minha casa ocupo a cozinha para sobreviver, aprendi com minha avó. Não tenho seu fogão de lenha, suas panelas de barro e colher de pau e, muito menos, seus segredos e temperos. Carrego comigo seus ensinamentos de fome nos olhos e alma acesa que não aceita se aprisionar. Desconfio que o livro de receita da vovó seja herança de Dandara, Maria Felipa, e tantas guerreiras que alimentaram a resistência do povo negro.
Vovó usava poucos ingredientes, mas suas receitas eram fartas em segredos, mesmo quando o caldo era ralo revelava sabor de não desista e, um simples angu à base de feijão, toucinho e farinha, de tão gostoso, parecia ativar cada vez mais a fome. Vó dizia que era preciso ter fome para sobreviver, não só fome de comida que se bota no prato, mas fome de liberdade. Quem saboreava seus pratos aprendia a não engolir o que lhe oprimia, junto com a comida da vó, também se mastigava resistência.
Acolhida nos braços das ancestrais, de vovó às que vieram antes dela, esqueço que estou sozinha, me lembro que não sou sozinha. Comigo todas que me fortalecem, todas que, mesmo distante, me ajudam a mexer a panela. Insisto em cozinhar, provoco a fome, eu quero sobreviver. Quebro o silêncio da cozinha com o movimento de preparo da comida: um som da faca na pedra, um barulho da água fervendo, o alimento criando vida, eu criando o alimento e o alimento me deixando viva. Meu livro de receita, tal qual o da vovó, foge ao modelo convencional. São receitas simples que satisfazem a fome do corpo, receitas de encher os olhos de fome por igualdade e receitas que incitam a alma a se rebelar contra o indigesto preconceito. Uma culinária antirracista, com uma pitada da escrevivência de Conceição Evaristo, uma colher cheia de Ângela Davis para mudar o que não se pode aceitar, uma xícara de Maya Angelou para que ninguém nunca se esqueça de levantar quando cair, uma colher de chá de Elza Soares para ensinar o medo a ter medo de nós e 5 ml de todas que conspiram liberdade. Enquanto o tempo lá fora ameaçar a vida, fico aqui dentro alimentando a fome dos meus olhos. Será uma estadia provisória, ancestralidade se dá em travessia, tempo de maturar, tempo de abrir as janelas para os aromas da culinária se misturarem aos ventos e penetrar as veias dos quem têm a mesma fome. Corpos, olhos e almas sentem fome de forma diferente, no entanto, todos definham se não comerem a substância de seus desejos e necessidades. Minha vó nunca falou sobre, mas suas panelas ofereceram muito mais dos que se via, saciavam o corpo, trazia questionamentos aos olhos e inquietações à alma. Tudo que se mastigava, se reverberava, uma cozinha em constante movimento de corpos com fome de vida, uma panela com temperos e a força dos ancestrais.

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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