sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Dasdô e a Máquina de Costura - MARLI DE FÁTIMA AGUIAR

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Dias e dias ouvia-se o cozer da máquina de costura. Ela era conduzida a mão, pois não havia eletricidade. Era de ferro, preta, bonita e delicada. De vez em quando ouvia Dasdô gritando da sala de costura: “Mininu vem pô a linha na guia pra mim!!” Todas as crianças que estavam ali brincando no quintal de terra de chão batido vinham em disparada. Pois para elas era um oficio divertido, e sabiam que naquele momento podiam fazer parte na construção da obra de Dasdô.
A máquina era muito antiga, velha e carregava muitas histórias, ela ganhara a máquina de sua mãe, e também as habilidades para a costura. Dasdô já com idade acima dos 40 anos também carregava e costurava suas histórias, histórias de sua família e histórias do mundo. Ali, na máquina, ambas iam juntando as partes dos tecidos-vida, peça a peça e formando uma roupagem completa. A máquina de costura era pesada e ficava no canto da sala. Os movimentos de engrenagens e fitas, agulha e linhas, em sintonia com os movimentos de Dasdô, mãos, olhos atentos, joelhos e pés. Havia uma relação íntima entre aquelas senhoras, uma supria as necessidades da outra, e ambas conseguiam abrigar, vestir, aconchegar toda a família nos tempos difíceis.
Dasdô adorava costurar, fazia vestidos, calças, blusas, lençóis, panos de prato e tudo que conseguia inventar. Ela se realizava! Aquela mulher com tantos filhos para cuidar, nunca frequentou aulas de corte-costura - na época isso não existia, nem mesmo escola primaria. Esta arte aprendera com a mãe de sua mãe, e orgulhava-se desta herança. Herdara também os saberes das matriarcas ancestrais, o dom de parteira, benzedeira, curandeira.
Os cortes de Dasdô eram precisos para os corpos dos meninos que tinha. Uma vez e outra ela os tiravam da poeira para “provar” as medidas e certificar de que realmente havia acertado em seus corpos magros e barrigas grande. E quando terminava dizia: “Tá bão. Pode vorta a brinca”. Estes saiam correndo como ventos de Iansã e só se ouvia o barulho de batidas estrondosas de portas velhas de madeira quando passava o ultimo corpo-menino, alegre e gritando, e com a certeza de que algo bom viria pela frente, uma festa, um passeio, porque estavam sendo confeccionadas roupas novas.
O cheiro de tecido novo no nariz das crianças as embriagavam e se misturava a euforia e a excitação de ter uma peça nova e o prenuncio de algo bom no porvir, a festa de São João, as rezas de terços, bolo de milho e de fubá, pipoca, ki-suco de groselha, várias histórias e muita gente no vilarejo em volta de uma fogueira.
Na família haviam roupas para duas ocasiões, dizia Dasdô: “o molambo é de ficar em casa, e as bunitas é de sair”. Mas esta última se usava pouco, porque pouco também eram os passeios, as crianças logo cresciam e a roupa já não lhes serviam... Porém, Dasdô as reciclavam passando do maior para o menor, fazia o mesmo com os sapatos, os brinquedos... Os tecidos daquela Senhora eram na sua maioria panos de sacas brancas alvejadas. Este processo era lento onde as mulheres usavam água de cinzas do fogão que passavam nas roupas e as deixavam quarar por horas esticadas na grama ao sol próximo ao rio tendo uma imagem bonita de tapetes coloridos ou colchas de retalho.
Enquanto acontecia a quaragem Dasdô e outras mulheres cantavam, catavam piolhos na cabeça das crianças, faziam tranças umas nas outras e contavam histórias. O tecido ficava branquíssimo, e, só dela olhar para os panos, já imaginava o corte que dali sairia. As vezes o marido de Dasdô retornava da cidade após a venda da colheita do feijão, trazendo no embornal rolos de tecidos, carreteis de linhas. Se a colheita fosse boa, trazia também doces e brinquedos. Neste dia, ela o esperava na janela velha de madeira da casa enquanto o sol se punha, e a noite ia chegando lentamente no vilarejo.
Quando avistava seu vulto apontando ao longe em seus passos largos entre tarde-noite, corria a seu encontro, dava-lhe um abraço e um sorriso e ele retribuía. Dasdô ansiosa para iniciar a sua nova criação, descobria a máquina, tirava o pó, abria os tecidos e cheirava-os carinhosamente. E na luz de lamparinas Dasdô iniciava sua criação, no movimento frenético do cozer e a confusão dos pés, mãos, olhos, joelhos controlando os pontos, as linhas e agulha na nova peça, assim como na costura da vida.

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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