sábado, 28 de agosto de 2021

Vinte Anos Depois - CLÉVIA WESTPHALEN

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Os guarda-chuvas colidiram na faixa de pedestres num fim de tarde. Na urgência do sinal que amarelava soltaram um "desculpa, desculpa" distraído. Reconheceram-se pela voz. Oi, há quanto tempo! Que bom ver você! Não vamos ser atropelados justo agora, que tal um café? Sem esperar resposta a conduziu pelo braço. O tempo retém as significâncias e resgata o guardado com precisão cirúrgica, se a vida assim dispuser. Lembrou dos anos de dinheiro curto quando, na volta do cinema dividiam um filé no restaurante da esquina.
Frente a frente na cafeteria o assunto fugiu. Ela quebrou o silêncio e perguntou, como vai a vida? Ele foi evasivo, tangente. Continua escorregadio, pensou. Casaram jovens, se separaram maduros. O casamento dele terminou antes que o dela. Quando sentiu que a coisa degringolava, ela se agarrou na ilusão do amor eterno. Há de passar, pensou. Não passou. Ele remoçou. Namorou, dourou a pele e coloriu a vida. O basta foi brado dela.
União sem filhos – único laço indestrutível – não houve mais natais nem aniversários, tréguas onde a civilidade, em nome da prole, é obrigatória. Nunca mais se viram até aquele dia chuvoso. O papo se arrastava cheio de vazios, ele alegrinho e sem assunto; ela, com uma enciclopédia na ponta da língua. Onde você mora? Jamais imaginei encontrá-la atravessando a rua. A cafeteria já ia fechar. Temos que ir, ela disse. Percebia que o que entenderam como sucesso na vida tinha absorvido os vinte anos de união. Finda a labuta de comprar o apartamento maior, o carro melhor, havia segurança financeira e um casamento em frangalhos. Ela lutou para ressuscitar o que já não era. Ele não queria mais nada.
Quando se viu sozinha mudou de cidade, de amigos e de história. Construiu a vida na sua justa medida. Vamos nos encontrar sem hora marcada, foi a sorte que me trouxe você! Olhava para ela, feliz. Vai que dá para sermos amigos, ela pensou. Maduros, não tinham mais premências a atropelar a razão, mas precisava pensar antes de deixá-lo entrar novamente na sua vida. Brincou que iria implicar com ele. Vou me incomodar com o seu cabelo e como você me esconde dos amigos que não me apresenta. Não, não, mudei muito, acredite. Não acreditou, mas ficou tentada a deixar-se iludir. Como quando, fascinados pelos voleios do mágico, enxergamos o que não existe.
Posso ligar para você? Quando ela começava a recitar o número, o celular dele tocou. Não atende, mas inclina a cabeça para digitar uma mensagem. Quando ergue o olhar, desperdiça o sorriso amarelo. Ela não está mais ali.

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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