domingo, 29 de agosto de 2021

Memórias de Vida - CRISTINA FERREIRA GREGO

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Sentada em frente ao computador e de olhos absortos na página em branco, o título martelava-me na cabeça. Trajava de pijama e robe. O cigarro apagado, permanecia entre os dedos da minha mão engelhada.
Lembranças da minha existência. Pareciam excertos retalhados de outros tempos, de uma vida sentida por outra que não eu. Não dormi naquela noite, que se fez madrugada, arrastando as horas até ao entardecer. No escritório, as luzes apagadas e a cortina pendente atrás de mim, criava um travão ao sol e uma barreira para o mundo. Os minutos foram gastos entre a dor que me atormentava o físico e a dúvida que me lacerava a alma.
As palavras do meu marido ecoavam pela casa. Chamava o meu nome e dizia insistentemente que os convidados chegariam em breve. Os setenta e dois anos carregava-os eu, mas ousava celebrar a data perante os outros. Existirá pior motivo para comemorar? O de um corpo que me trai e me devolve uma imagem em decadência. Um espírito que carrega o fardo de estórias imaginadas e que inusitadamente não quis passar para o papel enquanto jovem. Ou talvez me tenha faltado o talento. Agora, encontram-se condensadas em placas, nas metástases que me invadem o cérebro. Vesti-me sem o aprumo de outra época. A vaidade, era um pecado que já não habitava em mim.
Acho que dei as boas noites e que, embora calma, trazia uma palidez de cera. A noite foi invadida por um aguaceiro forte, ouvia-se uma chuva grossa e pesada lá fora. Nunca mais esquecerei esse momento, as pessoas a falarem não sei de quê e eu a percorrer a sala com o olhar, o chão, as paredes, o enorme salgueiro por trás da varanda. Enchi um copo com uísque e saboreei, enquanto o ardor escorria pela minha garganta. Olhei de longe o meu marido. Ousei lembrar-me das linhas do seu corpo jovem e de como tantas vezes me deixei amar entre aquelas paredes. Continuei a beber. Pousei o segundo copo e fiquei. Sentia-me mal, nunca me senti assim, murmurei numa lassidão arrastada.
Silêncio brusco. Espantoso como o meu eu se havia transformado noutro alguém, noutra personagem menos imediata e menos concreta. A minha imagem no vidro contornada pelo reflexo das luzes sabotava a minha essência. A iminência da morte dava-me a passividade de quem já se sente ausente. Se ao menos me fosse dado o tempo suficiente para escrever a minha última obra. Sentia o constante desinteresse da mulher desabitada de pessoas e de lugares, de tempos e de sentimentos.
As gargalhadas dos outros contornavam a lacuna do meu vazio. Tocavam-me e felicitavam-me pela riqueza de vida que acumulava. Um casamento feliz e tantas obras editadas. Décadas de palavras aglutinadas e prensadas nas estantes de quem me quer ler. Memórias que se esvaem no presente. O meu coração pulsava de tristeza. Senti-me uma condenada, que ao deambular entre os convidados, abria vagarosamente e voluntariamente a minha cova. E eles, no seu papel de cangalheiros, me cobrissem com pazadas de terra.
Remeti-me a um vagar introspetivo que arrastei comigo até ao piso superior. Escutei o ranger da madeira na pesada porta do nosso quarto. Os passos, que sabia de cor, tornaram-se mais longos e espaçados. A janela entreaberta deixou entrar o frio que me enregelou os ossos. Fixei o salgueiro, que pareceu jorrar lágrimas que entranhavam na terra, formando um ciclo único de dor. Fechei os olhos e deixei o peso do meu corpo arrastar-me para terra.
Perdi a vida anterior. E a interior, bem entendido, tinha as referências do passado onde moraram os afetos e os laços sentimentais que me impeliram a escrever, mas que tardavam em chegar.

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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