quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

A pandemia - SARA TIMÓTEO

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Era o tempo em que as coisas morriam; ele via divagar pelo velho
rio cinzento os troncos arrancados ao chão da lezíria, bem como
as gaivotas envenenadas que arquejavam, moribundas, sobre as
ilhas de plástico que quase pareciam belas sob a luz cinzenta da
tarde eterna.
Nesse tempo falava-se de uma pandemia, algo que havia mudado
o bom curso da natureza das funções animais, humanas e
vegetais. Dos minerais não se conhecia história desalmada de perdas
e nem notícias deles havia, exceto daqueles que se calcavam
por via da labuta dos dias.
Era o tempo em que as coisas morriam. O nascimento era,
agora, reservado aos muito ricos, os únicos a conspirar para alcançar
uma velhice onde se alquebravam e enlouqueciam, vertendo
líquidos e sólidos sem memória das funções do corpo e destituídos
da glória alicerçada em feitos passados.
Pandemia outra não conhecera que não a da ganância humana,
uma ambição desmedida como uma fúria sem dono. E também
ele estrebuchava, animal, quando o desejo o possuía como uma
corrente alterosa de fraqueza e lume.
Morria, sabia-o com todo o unto que lhe desgrenhava os cheiros
e texturas do corpo. Era uma não-memória destinada a perecer à
sombra do dia esculpido pela fome.

EM - PANDEMIA DE PALAVRAS - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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