quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A floresta quinta - ANTÓNIO MOTA

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Era tão de noite e tão de frio, que o escuro gelou, e o ar também,
e com eles tudo, na Floresta Quinta. Nada bulia, nem brisa nem
vida, nem água, nem nada. Tudo era inerte, agarrado e preso,
encarcerado no gelo. Até mesmo o voo, o lume, o vento e o grito.
Aproximavam-se há muito as forças do mal. Mas o homem dizia
que nada podia. Que era o destino, a seguir seu caminho. E nada
fazia.
Naquele dia, ainda o sol, vigiava o corvo sagrado, lá nas alturas,
quando, de repente, sem que pressentisse, apesar de corvo,
um arrepio, agudo e escuro, petrificou-lhe a garganta, a voz ficou
muda, os ossos estalaram, hirtas as asas. Era uma faca afiada, de
vento gelado, na ponta da morte. Valeu-lhe a cotovia invisível, a
do voo instantâneo, que ia a passar, mensageira do verbo enviada,
e chamou por ele.
Acordado da morte, entendeu o corvo a força assombrosa das
trevas, que se abatia, secreta, sobre a Floresta Quinta, e sobre o
seu espírito sonâmbulo. Inteligente, o corvo sagrado, já fora dos
seus domínios habituais de ave entendida, sabia que devia seguir
a cotovia, em missão maior, ouvindo devoto o que ela lhe, e fazendo.
- Não temas. Vamos encontrar as águias brancas e os anjos
brancos, que se fundem no voo, quando se cruzam, ficando, então,
cada um a ser qualquer um dos dois. Habitarás a águia e o
anjo, e os dois serão em ti, sendo tu nos dois, e cada um de vós
será sempre os três. E, assim, eu vos habitarei também, unidos no
resgate do sagrado, desprezado e perdido em toda a parte.
Duas águias brancas picam lá do alto, simultâneas, sobre a
Floresta Quinta, quase moribunda. Sábias, atravessam os limites
do gelo, e são anjos brancos quando já no chão, donde saem aves,
que dançam rituais uma oração. Acendem o fogo. Libertam a
luz. Derretem o gelo. Queimam tudo o que está contaminado.
Regressa, triunfando, o espírito distinto da Floresta Quinta. E os
homens, vendo, viram-se ao espelho, e não gostaram muito.
Espantados, viram que não tinham feito nada, e que podiam.
Viram que haviam esquecido o sagrado humano, dentro de si
mesmos. Viram que a escuridão, que os impedia de, era a ignorância,
e que o gelo, onde presos, era feito de cobardia e de medo.
Viram que eram homens de ferro há tempo de mais. E viram que
ser homem é suplantar o ferro, elevando-se na grandeza estóica
que a si mesmos devem, de humanos.
Partiram as águias brancas. Desapareceram na brancura das
alturas, onde todo o voo é branco. Seguiram-nas os homens, na
distância máxima do olhar, e gostaram de sentir a cabeça levantada.
Deixaram, aos poucos, de serem os homens de ferro que
eram. Perderam o medo. Beberam das chamas. Derreteram o gelo
que lhes empedernia o coração. Há quem diga que choraram. A
cotovia e o corvo, porém, a pedido da carriça, ficaram de atalaia
na Floresta Quinta. Será que desconfiam? Não o sei, e sei-o bem.

EM - PANDEMIA DE PALAVRAS - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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