sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Cangalha do Vento (excerto IV) - LUIZ EUDES

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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José Paulo vivia em pensamentos, em conflitos que se dirigiam aos seus sentimentos recônditos. Embora tivesse convicção do que queria, um sentimento de estranheza tomava-o. Olhava as luzes da cidade, os prédios do centro velho, enquanto sacolejava num coletivo da prefeitura de São Paulo, quase melancólico. Seus pensamentos iam até ao Junco, ao pau de arara que buscara por transporte; depois de guardar o dinheiro que conseguira no cultivo de feijão, no trato de mandioca, na despalha de milho. Lembrava-se de todas as coisas vividas há muito tempo. Do pai Aristeu e da mãe, dona Tereza. Lembrava com um sentimento distante, mas nítido, da noite da morte da mãe. De quando correra para buscar auxílio da velha parteira Salustiana e, depois, de vê-la enxugando as mãos com pesar quando soubera que a mãe havia morrido. As lembranças abrolhavam como um cardume à flor da água. Lembrou do dia do velório, da chuva que caía, e até mesmo do rosto distante do pai, intrigado com aquele entrar e sair da casa. Era quase uma afronta aquele abrir e fechar de portas. Parecia que o mundo estava em obras. Menos Aristeu, o seu pai viúvo, que era quem mais precisava de reformas, mas não naquele momento. Queria apenas o direito de ficar ali, quieto, velando o descanso eterno da sua companheira de tantos anos e momentos não tão fáceis. Aristeu queria conquistar o direito de chegar a algum lugar, mas sem ter de ir. Queria cultivar esse pecado. Essa preguiça de não querer nem mesmo respirar. E José agora podia ver os olhos do velho. Podia ver aquele dia e outros distantes como uma história que um sopro levou. Antes de descer do ónibus, José dispersou os pensamentos. Agora teria que tratar de outro assunto. Era final da década de 1960. Ele entrou, encheu um copo com água, sentou-se e declarou com uma calma distante à mulher que observava com curiosidade: 
– Maria, vamos arrumar nossas coisas e voltar para a Bahia. O Junco é o nosso lugar. Lá nosso filho nascerá.

EM - CANGALHA DO VENTO - LUIZ EUDES - IN-FINITA

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