quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Uma Mulata com Gosto de Infância - LIÈGE DE MELO

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Adelaide Matias Dantas era o seu nome; viúva, sem filhos.
Quando foi “viver” com nossa família, minha irmã caçula estava a caminho. Mamãe teve complicações no parto que se alongaram por meses; época em que a bebê se mudou para o seu quarto, de onde, coberta de mimos, só saia para ser amamentada.
Desde o seu primeiro dia de trabalho, com todo respeito, passou a chamar minha mãe (bem mais jovem do que ela), de “Dona Menina” Para nós, animada turma infantil formada por quatro irmãos e numerosos primos que circulavam pela casa da minha infância, ela era a nossa Adélia; aquela que na ausência da mãe tinha poderes ilimitados para definir cardápios, horários e espaços das crianças transitarem, além de cuidar dos animais domésticos: um inteligente cão vira-lata, um falante papagaio, pássaros, tartaruga, galo, galinhas, e sempre um porquinho que comprava para vender após a engorda.
O vira-lata era tratado com lições de moral e vassouradas para ser um “cachorro educado”; o papagaio, de tanto ouvir seu palavrão predileto “corno” causava constrangimentos ao pronunciá-lo saudando visitas importantes como o padre e o prefeito da cidade.
Ao aconselhar meu único irmão à imitar as qualidades do meu pai, falava: “meu fio, seja homem, siga a benção do seu pai”, e se o humor lhe faltasse, “seu corno, porque você não segue a benção de seu pai?”
Zelava por nossa saúde, tratando nossas indisposições físicas com suas “meizinhas”: chás, lambedores, escalda-pés antes ou durante um acompanhamento médico.
Nossa babá se dizia “morena da cor de canela”; baixinha, redondinha, sendo seu orgulho maior as pernas, roliças e sem varizes. Tinha linguagem própria, quase dialética, para expressar afetos e opiniões; seu jeito peculiar de ser durona era puro carinho.
Na casa existiam duas cozinhas: a dela, com fogão à lenha, pote e panelas de barro (usadas diariamente para seu nutritivo cardápio), e a da minha mãe, com geladeira, liquidificador e fogão a gás para bolos, pudins ou comidas especiais.
Com rotina rígida, às quatro horas da manhã já estava fazendo o café do meu pai, que madrugava na labuta da sua padaria e, às 19h, após “deixar tudo em ordem”, ficava no quintal fumando seu cachimbo de fumo de rolo, olhando as estrelas e orando.
O mês de maio, com novenas dedicadas a Padroeira da cidade, era aquele em que se permitia sair à noite para rezar por “saúde e paciência para lidar com meus meninos”.
Desde a primeira vez que a indaguei sobre sua idade, respondeu: “quarenta e oito anos” e assim, independente dos anos, permaneceu com tal resposta até o fim dos seus dias.
A sensação é que o tempo seguia, no entanto, só seus cabelos iam embranquecendo; conservava a carinha redonda, naturalmente hidratada e sem rugas, dando ordens e conselhos; já sobre namorados, portes de mocinhas de família “para não cair na boca do povo”, bons rapazes para serem “homens de futuro” e muita paciência, para Dona Menina “entender a juventude de hoje”.
O progresso tecnológico levou à Triunfo: telefones, gravadores televisões(...) O telefone foi o que mais lhe impactou; não o chamava pelo nome correto e sim pela denominação dada a “troços complicados”: “terém”. Ao tocar, pedia para alguém atender, e se estivesse só, começava o monólogo: “Já vou, espere aí... ô bicho insistente, já estou indo...” quando atendia era impaciente: “Alô, pode falar. Se não for urgência, criatura, ligue depois. Sou muito ocupada para perder tempo neste terém”.

Como previsto, um dia fui para capital – “estudar para ser doutora”; depois meus irmãos e primos.
Adélia, um a um fazia recomendações sobre o sentido de ser alguém na vida, sem esquecer quem deixou para trás (ela própria). Cada partida era uma tristeza; chorava, até ir se acostumando com a ausência.
Às vezes, falava para mamãe: “Ô Dona Menina, fico imaginando como deve estar os meninos naquele lugar tão grande e calorento; pegue este terém e veja se ele dá notícia deles”. Era como se o telefone por si só tivesse notícias imediatas.
Nunca nos visitou em Recife, sua única exceção foi a formatura da minha irmã mais nova. Comprou sapatos novos, mandou confeccionar vestidos “chiques” e veio prestigiar “sua doutora”.
Na colação de grau, ao ser apresentada a professores e amigos, dizia com o seu melhor sorriso: “Está vendo esta linda doutora, branquinha, educada; é como se fosse minha fia; só não pari, mas criei da melhor maneira”.
Quando levei meu futuro marido à sua presença, opinou: “Minha fia, ele parece boa pessoa, calado do jeito que um homem deve ser; só que é magro de dar dó; cuide dele direito, faça muito pirão para este rapaz”. Ao ver meu cunhado, recifense de quase dois metros de altura, trocar seus pratos típicos por sanduíches e banana com leite liquidificado, disse à mamãe: “Vixe, Dona Menina, nunca vi uma coisa dessa, um rapaz desse porte viver de ‘engrossante’ como criança de colo”. Engrossante em seu vocabulário era mingau de bebê.
Estes e tantos outros fatos, inesquecíveis por sua simplicidade e beleza, ocorreram com Adélia comandando aquela casa que nunca mais foi a mesma desde que ela faleceu, deixando um pouco da sua história mesclada com a de todos que por ali passaram na época do seu reinado.
Hoje, eu, irmãos, primos e amigos, damos boas risadas recordando aquela figura ímpar que tanto contribuiu para a nossa formação pessoal. Seus meninos, acredito, “seguiram a benção dos seus pais” ao tornarem-se cidadãos conscientes da sua contribuição à melhoria deste caótico planeta, como tributo àquela “morena da cor de canela”, que em nossos corações tem sabor do doce encanto da infância.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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