sexta-feira, 28 de agosto de 2020

DEZ PERGUNTAS MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL - DIVANIZE CARBONIERI


Agradecemos à autora DIVANIZE CARBONIERI pela disponibilidade em responder ao nosso questionário

1 - Como você vê o papel da mulher na literatura atual?

Vejo que ainda há muito espaço para a mulher conquistar na literatura. Existem pesquisas acadêmicas, como aquelas empreendidas pelo grupo de estudos da Profa. Dra. Regina Dalcastagnè (UNB), por exemplo, que levantam dados referentes à literatura brasileira contemporânea, sobretudo aquela publicada pelas maiores editoras do Brasil. Ainda há um predomínio de autores homens, brancos, cisgêneros, heterossexuais, urbanos, de classe média. É como se apenas a perspectiva desse grupo social fosse autorizada a "virar literatura", como se só o que os membros desse grupo escrevem é que fosse literatura ou "alta literatura". Daí, quando você tem uma perspectiva diferente, não raro há dúvidas a respeito de seu caráter ou qualidade literária. Por exemplo, apenas recentemente os escritos de Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra, autodidata e pobre, têm sido reconhecidos como literatura e das boas. E isso não sem encontrar ainda fortes resistências de certos grupos dominantes. Existem muitas mulheres escrevendo no Brasil, pertencentes a diferentes grupos sociais, e produzindo uma literatura interessantíssima, de muita qualidade. O Mulherio das Letras é uma prova disso. Também o é o grande número de autoras sendo publicadas sobretudo por editoras independentes, que, apesar de toda a crise editorial, estão tendo um momento de florescimento no país. Assim, é uma situação que tende a mudar, que já está mudando, e as pessoas já estão pensando na literatura como algo plural, mais inclusivo de diversas experiências sociais e visões de mundo.

2 - Em que medida o universo feminino influencia na hora de escrever?

Tenho uma subjetividade que obviamente foi moldada pela minha experiência social de ser mulher. Sei que sou mulher, embora não saiba exatamente o que é uma mulher ou o que é ser uma mulher. Não sei definir e nem dizer em que somos diferentes dos homens, por exemplo, sem recorrer a estereótipos que são, na verdade, vazios de sentido e que podem ser questionados a qualquer momento. Mas nas minhas interações sociais, sei que o fato de ser mulher é determinante para que eu tenha experiências específicas e que seja tratada pelos outros de acordo com as ideias que eles fazem a respeito do que é uma mulher. Sou uma mulher cis, o que significa que me reconheço no gênero que me foi atribuído ao nascer, mas não me sinto confortável nessa posição, nesse gênero, justamente por causa dos estereótipos limitantes e das tentativas recorrentes de inferiorização. No meio de tudo isso, tem a escrita, que não tem como não ser marcada por essas experiências e por esse desconforto. Percebo que isso ecoa, de uma maneira ou de outra, nos textos que escrevo, às vezes de forma mais direta ou evidente, às vezes mais sutilmente. Mas está sempre lá.

3 - Em que corrente literária acha que a sua escrita se enquadra?

Não consigo me enquadrar em nenhuma corrente literária específica, até porque, na nossa experiência da contemporaneidade, somos perpassadas por inúmeros experimentos ou pressupostos anteriores. São camadas e camadas de discursos nas quais navegamos, na maioria das vezes sem ter muito discernimento a respeito disso. Mas não somos a origem das nossas palavras. Elas já existiam antes, já foram ditas por milhões de outras e outros antes de nós. A especificidade existe na medida em que cada uma de nós traz uma mistura diferente, uma combinação diferenciada de todas essas fontes, e daí pode surgir algo que tenha uma marca pessoal.

4 - Que importância dá aos movimentos de integração da mulher?

Acho os movimentos feministas muito importantes porque ainda estamos longe da igualdade entre os gêneros. Os feminismos buscam isso: a equidade entre os gêneros, principalmente no que se refere aos direitos civis. Não se trata do contrário do machismo - e isso a gente precisa sempre reiterar porque há muita concepção errônea. Não se trata de colocar a mulher em superioridade em relação ao homem, mas de buscar para ela os mesmos direitos, as mesmas oportunidades, para que não seja limitada em nada pelo simples fato de ser mulher. Precisamos pensar nos feminismos como algo plural mesmo, já que há diferenças de demandas em inúmeras coletividades de mulheres. Porém, o que eles têm em comum é a busca pela equidade entre as pessoas. É por isso que se diz que "o feminismo é um humanismo". No que se refere à literatura, os movimentos feministas, como é o caso do Mulherio das Letras, são fundamentais porque, como já disse acima, a discrepância entre o espaço atribuído às escritoras e àquele consignado aos escritores ainda é muito grande. Então, o Mulherio das Letras vem para chamar a atenção para esse fato, para a conscientização de que muitas outras perspectivas sociais precisam ser incluídas na literatura, para que a gente não corra o risco de ter uma "história única" sendo sempre representada ou endossada.

5 - O que acredita ser essencial para divulgar a literatura?

Precisa haver uma democratização nos meios de divulgação da literatura, assim como nos meios de divulgação de informação, de modo geral. A internet possibilitou a visibilidade de muita produção que antes ficava escondida, que não chegava aos grandes centros. Hoje é comum intercâmbios entre autoras e autores de diversos estados, países, continentes, de forma muito mais rápida e dinâmica do que era no passado. Existe uma maior horizontalização da produção literária, com muito mais gente publicando em mais locais por mais editoras. As revistas literárias, por exemplo, têm que se abrir para isso: tentar dar uma visão mais múltipla do que está ocorrendo na literatura e não ficar sempre enfocando a produção dos autores das grandes editoras dos grandes centros. É o que a gente tenta fazer, por exemplo, na Ruído Manifesto, uma revista literária em que sou uma das editoras. Os prêmios literários também são outro ponto. Embora pareça ainda haver um predomínio de livros publicados por grandes editoras nas premiações mais importantes do país, já tem havido um espaço crescente para autoras e autores de editoras independentes. Essencial é que isso se intensifique cada vez mais e que obviamente atinja um público mais e mais amplo.

6 - Quais os pontos positivos e negativos do universo da escrita?

O universo da escrita é muito solitário. Escrever demanda que a gente se isole por alguns períodos, às vezes grandes. Nem sempre o investimento de tempo e esforço se traduz em quantidade ou, mais importante, qualidade dos escritos. Então, pode-se dedicar anos inteiros à elaboração de um romance, por exemplo, e depois não ficar satisfeita com o resultado. É preciso também amadurecer para lidar com as críticas, que certamente virão. Se não houver esse amadurecimento, pode existir um embotamento ou até autossabotagem da própria produção. A crítica deve estimular e não travar a criatividade. Mas para isso a autora ou autor tem que ter autoconhecimento suficiente para saber que apenas ela ou ele é capaz de dar a sua contribuição. Todos esses podem ser considerados pontos negativos do universo da escrita, embora possam ser positivados de acordo com as atitudes da autora ou autor. O ponto mais positivo da escrita, na minha opinião, é a capacidade de dar concretude a algo que só existia em nossa cabeça, de nos libertar, assim, do que estava lá exigindo uma vazão.

7 - O que pretende alcançar enquanto autora?

Quero ser lida por um número cada vez maior de pessoas, embora saiba bem o quanto isso é difícil e até aleatório. Uma autora ou autor pode ter muita qualidade e ainda assim não ser muito lida/o. Mas falando em termos ideais, o que eu desejo é suscitar inúmeras leituras e que se produza muitos discursos sobre os meus escritos. A obra que permanece no tempo é aquela sobre a qual se escreveu muito, sobre a qual muitas pessoas diferentes produziram discursos na sucessão do tempo. Acho que esse é o sonho mais elevado de toda escritora ou escritor.

8 - Cite um projeto a curto prazo e um a longo prazo.

Se tudo der certo, no decorrer de 2019, lançarei mais um livro de poesia, um de contos e um infantil. Já estão praticamente prontos, enquanto cavo as oportunidades para publicá-los. Estou também participando de várias antologias, como as do Mulherio das Letras, tanto do Brasil como de Portugal. Um projeto a longo prazo é escrever um romance.

9 - Sugira uma autora e um livro (contemporâneos).

É até uma temeridade sugerir uma única autora e um único livro, diante da infinidade de boas escritoras e obras que estão circulando. Vou me ater a alguém que faz parte do meu círculo mais próximo e que talvez não tenha ainda recebido tanto reconhecimento quanto outras autoras contemporâneas mais celebradas. Trata-se de Flávia Helena, que é uma escritora paulista, residente em Atibaia. Seu livro de estreia é a coletânea de contos Sem açúcar (2016), publicada pela Editora Penalux. Nessas narrativas, a autora enfoca principalmente o universo dos afetos, em que mulheres e homens são quase sempre marcados pela solidão dos relacionamentos. As dores de amores são retratadas de acordo com uma verdadeira pedagogia do amor e da dor, em que existe uma avaliação, um exame desses sentimentos, não em busca de uma superação, mas como uma celebração da continuidade da vida, apesar de todos esses percalços e perdas. É uma leitura que eu recomendo.

10 - Qual a pergunta que gostaria que lhe fizessem? E como responderia?

Essa é uma pergunta muito difícil realmente. Talvez eu possa dizer que gostaria que me perguntassem em que posso contribuir como escritora para esse mundo em que estamos vivendo. Responder a isso também não é a coisa mais fácil de se fazer. Mas talvez eu possa arriscar dizer que sou uma pessoa em que uma série de experiências forjou uma atitude de interrogação constante de todos os preconceitos, discriminações, injustiças. Sou alguém que não se conforma, que não acha natural que uns sejam mais privilegiados que outros. Sendo assim, talvez seja dessa forma que eu possa contribuir como escritora, tentando trazer para os meus textos esse desconforto incessante com as coisas como elas estão postas. Pelo menos é o que eu espero.

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