Agradecemos à autora DIVANIZE CARBONIERI pela disponibilidade em responder ao nosso questionário
1 - Como você
vê o papel da mulher na literatura atual?
Vejo que ainda há muito espaço para a mulher
conquistar na literatura. Existem pesquisas acadêmicas, como aquelas
empreendidas pelo grupo de estudos da Profa. Dra. Regina Dalcastagnè (UNB), por
exemplo, que levantam dados referentes à literatura brasileira contemporânea,
sobretudo aquela publicada pelas maiores editoras do Brasil. Ainda há um
predomínio de autores homens, brancos, cisgêneros, heterossexuais, urbanos, de
classe média. É como se apenas a perspectiva desse grupo social fosse
autorizada a "virar literatura", como se só o que os membros desse
grupo escrevem é que fosse literatura ou "alta literatura". Daí,
quando você tem uma perspectiva diferente, não raro há dúvidas a respeito de
seu caráter ou qualidade literária. Por exemplo, apenas recentemente os
escritos de Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra, autodidata e pobre, têm
sido reconhecidos como literatura e das boas. E isso não sem encontrar ainda
fortes resistências de certos grupos dominantes. Existem muitas mulheres
escrevendo no Brasil, pertencentes a diferentes grupos sociais, e produzindo
uma literatura interessantíssima, de muita qualidade. O Mulherio das Letras é
uma prova disso. Também o é o grande número de autoras sendo publicadas
sobretudo por editoras independentes, que, apesar de toda a crise editorial,
estão tendo um momento de florescimento no país. Assim, é uma situação que
tende a mudar, que já está mudando, e as pessoas já estão pensando na
literatura como algo plural, mais inclusivo de diversas experiências sociais e
visões de mundo.
2 - Em que
medida o universo feminino influencia na hora de escrever?
Tenho uma subjetividade que obviamente foi moldada
pela minha experiência social de ser mulher. Sei que sou mulher, embora não
saiba exatamente o que é uma mulher ou o que é ser uma mulher. Não sei definir
e nem dizer em que somos diferentes dos homens, por exemplo, sem recorrer a
estereótipos que são, na verdade, vazios de sentido e que podem ser
questionados a qualquer momento. Mas nas minhas interações sociais, sei que o
fato de ser mulher é determinante para que eu tenha experiências específicas e
que seja tratada pelos outros de acordo com as ideias que eles fazem a respeito
do que é uma mulher. Sou uma mulher cis, o que significa que me reconheço no
gênero que me foi atribuído ao nascer, mas não me sinto confortável nessa
posição, nesse gênero, justamente por causa dos estereótipos limitantes e das tentativas
recorrentes de inferiorização. No meio de tudo isso, tem a escrita, que não tem
como não ser marcada por essas experiências e por esse desconforto. Percebo que
isso ecoa, de uma maneira ou de outra, nos textos que escrevo, às vezes de
forma mais direta ou evidente, às vezes mais sutilmente. Mas está sempre lá.
3 - Em que
corrente literária acha que a sua escrita se enquadra?
Não consigo me enquadrar em nenhuma corrente literária
específica, até porque, na nossa experiência da contemporaneidade, somos
perpassadas por inúmeros experimentos ou pressupostos anteriores. São camadas e
camadas de discursos nas quais navegamos, na maioria das vezes sem ter muito
discernimento a respeito disso. Mas não somos a origem das nossas palavras.
Elas já existiam antes, já foram ditas por milhões de outras e outros antes de
nós. A especificidade existe na medida em que cada uma de nós traz uma mistura
diferente, uma combinação diferenciada de todas essas fontes, e daí pode surgir
algo que tenha uma marca pessoal.
4 - Que
importância dá aos movimentos de integração da mulher?
Acho os movimentos feministas muito importantes porque
ainda estamos longe da igualdade entre os gêneros. Os feminismos buscam isso: a
equidade entre os gêneros, principalmente no que se refere aos direitos civis.
Não se trata do contrário do machismo - e isso a gente precisa sempre reiterar
porque há muita concepção errônea. Não se trata de colocar a mulher em
superioridade em relação ao homem, mas de buscar para ela os mesmos direitos,
as mesmas oportunidades, para que não seja limitada em nada pelo simples fato
de ser mulher. Precisamos pensar nos feminismos como algo plural mesmo, já que
há diferenças de demandas em inúmeras coletividades de mulheres. Porém, o que
eles têm em comum é a busca pela equidade entre as pessoas. É por isso que se
diz que "o feminismo é um humanismo". No que se refere à literatura,
os movimentos feministas, como é o caso do Mulherio das Letras, são
fundamentais porque, como já disse acima, a discrepância entre o espaço atribuído
às escritoras e àquele consignado aos escritores ainda é muito grande. Então, o
Mulherio das Letras vem para chamar a atenção para esse fato, para a
conscientização de que muitas outras perspectivas sociais precisam ser
incluídas na literatura, para que a gente não corra o risco de ter uma
"história única" sendo sempre representada ou endossada.
5 - O que
acredita ser essencial para divulgar a literatura?
Precisa haver uma democratização nos meios de
divulgação da literatura, assim como nos meios de divulgação de informação, de
modo geral. A internet possibilitou a visibilidade de muita produção que antes
ficava escondida, que não chegava aos grandes centros. Hoje é comum
intercâmbios entre autoras e autores de diversos estados, países, continentes,
de forma muito mais rápida e dinâmica do que era no passado. Existe uma maior
horizontalização da produção literária, com muito mais gente publicando em mais
locais por mais editoras. As revistas literárias, por exemplo, têm que se abrir
para isso: tentar dar uma visão mais múltipla do que está ocorrendo na
literatura e não ficar sempre enfocando a produção dos autores das grandes
editoras dos grandes centros. É o que a gente tenta fazer, por exemplo, na Ruído Manifesto, uma revista literária
em que sou uma das editoras. Os prêmios literários também são outro ponto.
Embora pareça ainda haver um predomínio de livros publicados por grandes
editoras nas premiações mais importantes do país, já tem havido um espaço
crescente para autoras e autores de editoras independentes. Essencial é que
isso se intensifique cada vez mais e que obviamente atinja um público mais e
mais amplo.
6 - Quais os
pontos positivos e negativos do universo da escrita?
O universo da escrita é muito solitário. Escrever
demanda que a gente se isole por alguns períodos, às vezes grandes. Nem sempre
o investimento de tempo e esforço se traduz em quantidade ou, mais importante,
qualidade dos escritos. Então, pode-se dedicar anos inteiros à elaboração de um
romance, por exemplo, e depois não ficar satisfeita com o resultado. É preciso
também amadurecer para lidar com as críticas, que certamente virão. Se não
houver esse amadurecimento, pode existir um embotamento ou até autossabotagem
da própria produção. A crítica deve estimular e não travar a criatividade. Mas
para isso a autora ou autor tem que ter autoconhecimento suficiente para saber
que apenas ela ou ele é capaz de dar a sua contribuição. Todos esses podem ser
considerados pontos negativos do universo da escrita, embora possam ser
positivados de acordo com as atitudes da autora ou autor. O ponto mais positivo
da escrita, na minha opinião, é a capacidade de dar concretude a algo que só
existia em nossa cabeça, de nos libertar, assim, do que estava lá exigindo uma
vazão.
7 - O que
pretende alcançar enquanto autora?
Quero ser lida por um número cada vez maior de
pessoas, embora saiba bem o quanto isso é difícil e até aleatório. Uma autora
ou autor pode ter muita qualidade e ainda assim não ser muito lida/o. Mas
falando em termos ideais, o que eu desejo é suscitar inúmeras leituras e que se
produza muitos discursos sobre os meus escritos. A obra que permanece no tempo
é aquela sobre a qual se escreveu muito, sobre a qual muitas pessoas diferentes
produziram discursos na sucessão do tempo. Acho que esse é o sonho mais elevado
de toda escritora ou escritor.
8 - Cite um
projeto a curto prazo e um a longo prazo.
Se tudo der certo, no decorrer de 2019, lançarei mais
um livro de poesia, um de contos e um infantil. Já estão praticamente prontos,
enquanto cavo as oportunidades para publicá-los. Estou também participando de
várias antologias, como as do Mulherio das Letras, tanto do Brasil como de
Portugal. Um projeto a longo prazo é escrever um romance.
9 - Sugira uma
autora e um livro (contemporâneos).
É até uma temeridade sugerir uma única autora e um único
livro, diante da infinidade de boas escritoras e obras que estão circulando.
Vou me ater a alguém que faz parte do meu círculo mais próximo e que talvez não
tenha ainda recebido tanto reconhecimento quanto outras autoras contemporâneas
mais celebradas. Trata-se de Flávia Helena, que é uma escritora paulista,
residente em Atibaia. Seu livro de estreia é a coletânea de contos Sem açúcar (2016), publicada pela
Editora Penalux. Nessas narrativas, a autora enfoca principalmente o universo dos
afetos, em que mulheres e homens são quase sempre marcados pela solidão dos
relacionamentos. As dores de amores são retratadas de acordo com uma verdadeira
pedagogia do amor e da dor, em que existe uma avaliação, um exame desses
sentimentos, não em busca de uma superação, mas como uma celebração da
continuidade da vida, apesar de todos esses percalços e perdas. É uma leitura
que eu recomendo.
10 - Qual a
pergunta que gostaria que lhe fizessem? E como responderia?
Essa é uma pergunta muito difícil realmente. Talvez eu
possa dizer que gostaria que me perguntassem em que posso contribuir como
escritora para esse mundo em que estamos vivendo. Responder a isso também não é
a coisa mais fácil de se fazer. Mas talvez eu possa arriscar dizer que sou uma
pessoa em que uma série de experiências forjou uma atitude de interrogação
constante de todos os preconceitos, discriminações, injustiças. Sou alguém que
não se conforma, que não acha natural que uns sejam mais privilegiados que outros.
Sendo assim, talvez seja dessa forma que eu possa contribuir como escritora,
tentando trazer para os meus textos esse desconforto incessante com as coisas
como elas estão postas. Pelo menos é o que eu espero.
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