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A criança nascera perfeitinha apesar da pouca probabilidade, afinal
foram muitos os contratempos durante a sua gestação. Mãe solteira,
abandonada pelo pai da criança, sem emprego, sem família, sem nada.
Apenas uma rede no casebre em que morava e a sua pequena menina.
Apesar de não ter tido instrução - cursou até o terceiro ano primário - a
vida a fez uma mulher de grande experiência de mundo, apesar da gravidez
indesejada.
Desempregada, passava horas deitada na rede com a sua pequena
menina ao seio. Era a única coisa que não faltava naquele lugar, o leite
da criança. E isso a deixava pelo menos mais tranquila com a sua sorte.
Era um período de muitas chuvas na cidade e ela adorava, sentia
uma grande admiração por essa obra de Deus.
Como fora filha do sertão, a chuva sempre foi expectativa de esperança,
de dias melhores.
Deitada na rede com a criança ao seio, perto da porta do casebre
entreaberta, ela via cada pingo da chuva, como uma benção divina, enquanto
a água corria perto da sua porta, como um rio. Era como se
estivesse levando suas dores para bem longe.
O cheiro da chuva na terra, tudo isso lembrava a infância pobre no
sertão, mas uma pobreza em que não faltavam o arroz e o feijão do dia
a dia. Os pais eram agricultores e mesmo em tempos de seca, a criatividade
deles ajudava na hora do roncar do estômago, pois comiam pratos
inusitados com o que não se tinha, mas não menos saborosos, temperados
pela fome.
Saíra do interior para trabalhar em casa de família, mas em pouco
tempo conhecera o pai de sua filha e engravidara. Não estava mais trabalhando,
a patroa não a quis grávida. Do pai da criança não se tinha
mais nem notícias. A novidade da sua gravidez foi para ele um estorvo;
para a sua patroa, um grande problema. Criança gestada e não sonhada,
não acolhida, talvez amada por sua mãe.
Deitada na rede pensava em todos esses momentos da vida, olhando
sua pequena menina. Acreditava que ela teria mais sorte que a dela e
estava engajada em fazer tudo para que isso acontecesse. Não iria deixar
sua menina sofrer o que estava sofrendo e “ai do cabra igual ao pai dela
que se aproximasse de sua filha”, pensava.
Diante do tanto pensar nem percebera que o seu casebre estava já
com muita água e lama. Sentia-se protegida com a presença do seu anjo
em seus braços, ora estava num peito, ora estava no outro e assim ficaram
horas a fio, unidas pelo amor e pela solidão daquele momento
silencioso, apenas com o cantar das águas divinas.
Com o murmúrio da natureza, deixou-se adormecer com sua pequena
na rede. Durante esse cochilo sonhara com terras férteis, crianças felizes
e com água farta para o banhar, o brincar e o beber. Bebia muita água,
como nunca em sua vida.
Após um lapso de consciência acordou aos sobressaltos e percebera
que estavam indo para bem longe, carregadas pelas águas. Assim, fechou
os olhos, abraçou a filha que mais parecia uma boneca, já sem vida, e
deixara-se levar (...)
EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA
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