terça-feira, 21 de julho de 2020

O Diabo mora comigo - MARILÉIA SELL

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Elisabete acorda sobressaltada. Não sabe das horas. Pela janela, enxerga que o dia ainda não amanheceu. “Deve ser madrugada”, pensou, desorientada, mal lembrando quem era e onde estava. Mal controlando o coração e as pernas que sacudiam em tremores. Passara outra noite correndo. Corria sempre. E não tinha paz porque a corrida se impunha. Sua sina era correr.
Aprendera técnicas de respiração para acalmar-se. Inspirava e contava até três, retinha o ar e contava até três, expirava e contava até três. Respirava até escorregar para o sono novamente. O cheiro de cânfora causava-lhe um sobressalto nas tripas, um arrepio de náusea. Uma pedra bem no centro do estômago queria ser vomitada.
Precisava vomitar. O expurgo do vômito também a acalmava. O cheiro da cânfora era desses cheiros que não saíam da pele: não havia água e sabão no mundo que dessem conta dessa limpeza. Aquele óleo fedorento entrara no seu sangue. Era isso. Só podia ser isso. O cheiro vinha de dentro. Isso explicava porque era impossível de lavar. E não era por falta de esforço: Elisabete perseguia obsessivamente a limpeza. Sua pele aberta em vergões vermelhos era a prova viva do seu esforço. A purificação exigia muita penitência, ela sabia.
Era sempre à noite que os demônios a visitavam; sentavam-se confortavelmente no sofá da sala e a esperavam para dormir. Eram a sua companhia mais constante nesta vida. E não tinham pressa, os demônios. Demônios têm a eternidade. Mas uma hora era preciso dormir. Elisabete sentia-se observada pelas frestas da casa mal juntada por tábuas irregulares. Eram olhos que a invadiam. Olhos que penetravam o seu corpo de menina. Olhos que lhe roubavam algo. Algo de que sentiria falta para sempre. Seus banhos eram cada vez mais rápidos, já não lavava mais o cabelo; demorava demais. Um dia, decidiu não tomar mais banho. Mas os olhos, aqueles olhos, a perseguiriam para sempre. Sua sina era também a vigilância. Sentada na cama, encharcada de suor, demora alguns segundos para perceber que não está na sua casa da infância.
Rapidamente, percorre o quarto com os olhos para ter certeza de que não há frestas. De que não há olhos observando. Inicia o seu ritual de respiração. Um. Dois. Três.
Por estar sempre em fuga e sempre vigilante, Elisabete sente-se uma retirante.
Uma retirante em busca da terra prometida. Uma terra em que pudesse ter paz, em que pudesse descansar, em que pudesse dormir sem ter pesadelos. Essa terra teria que ser tão longínqua que nem os demônios a pudessem encontrar. Mas os demônios, ela sabia, e sabia com a certeza de quem é íntima deles, são muito espertos. Eles esperam, pacientemente, momentos não vigiados. Não há fuga possível. Mais uma vez, acorda com o seu próprio grito em horas incertas na madrugada. Estava sozinha com ele. Ele era tão grande, era o senhor da casa e de todos que ali viviam. Mandava todos os irmãos saírem. Que brincassem na rua! Era a hora da sua própria diversão, não queria interrupções. Ele a massageava com óleo de cânfora. Escutara uma conversa, conversa privada de mãe e filha, em que reclamava que seus peitos doíam. Doíam porque começavam a crescer. Como feijões, começavam a saltar por debaixo das blusas.
Elisabete odiava os seus peitos. Odiava o seu corpo em transformação. Odiava a si mesma. Queria não ter um corpo.
Mais uma vez, respirava. Respirava e chorava. Mas, dessa vez, encontraria um lugar seguro. Encontraria a paz. Quanto mais tragasse o ar, mais próxima chegava de um alívio absoluto. Dormiria para sempre, pensou, por fim, satisfeita com a solução. Não haveria mais fuga e nem vigilância. O caminho para a terra prometida abria-se, estava ao alcance das mãos. Estava dentro de uma caixa com tarja preta. E então, o silêncio completo. A redenção exigia sacrifícios extremos.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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