sexta-feira, 24 de julho de 2020

O caleidoscópio 5 - SÃO SILVEIRINHA

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– O que devemos fazer quando deixamos de confiar? – perguntava-se naquele monólogo interior, enquanto olhava para o espelho como se este fosse seu conselheiro sentimental e lhe pudesse responder.
Depois, a sua atenção fixava-se nas rugas de expressão que começavam a desenhar-se-lhe na cara. Ela, para amenizar a questão da idade, julgava como únicos responsáveis por aqueles socalcos no seu rosto os dias de tristeza. Nem mais nem menos do que os dias de tristeza, os dias e horas em que o perfume tão peculiar e inebriante da felicidade não se fizera sentir. E foram muitos na sua ainda curta existência. Mas não era fácil consciencializar-se de que deveria aproveitar cada instante, assim como deveria perdoar o mal que lhe tinham feito e pedir perdão a quem tinha causado sofrimento. Não era fácil continuar com a sua rotina fingindo desconhecer que a tinham traído e lhe tinham faltado à verdade, nem ter paz ao saber que tinha feito sofrer quem mais a tinha amado. O pensamento ia, depois vinha. Como as marés ou como passos de uma valsa triste. Abandonava-a, para de seguida a torturar com esboços cruéis e disformes do seu passado. Não era fácil aceitar que tudo aquilo já estava destinado. Nada daquilo era fácil.
E o caleidoscópio não parava... Se a dado momento ela era uma menina com a ingenuidade própria dos seis anos, que se contentava com pouco por achar ter uma mão cheia de tudo para ser feliz, no momento seguinte, o caleidoscópio fixava-se noutro ponto da sua vida, precisamente na altura em que fora jovem e emanava alegria de cada poro do seu corpo. Já aí a escrita lhe rolava das pontas dos dedos e ia parar à folha de papel com uma naturalidade admirável; primeiramente de forma anárquica, crua, como um diamante por lapidar, para depois se tornar mais disciplinada e amadurecida. As ideias, essas, pareciam jorrar em êxtase, mas ainda não as encarava com grande seriedade.
Tinha crescido a ver filmes como “Os Marginais”, “Rumble Fish” ou o mítico “Hunger”, um dos seus filmes de eleição, e a ouvir bandas, também elas míticas, como The Smiths. A rebeldia, a inquietude e o espírito livre que tão bem a caracterizavam eram fruto deste processo, como se fosse a casta de um vinho. Foi-se-lhe apurando o gosto à medida que o tempo passava.

Agora, quase a um passo da meia idade, muitas vezes ria para não chorar.
Acreditava que tinha tudo para ter sido verdadeiramente feliz, mas as escolhas irresponsáveis ou precipitadas trocaram-lhe as voltas e usurparam-lhe alguma da sua essência. Continuava a observava-se ao espelho. A pessoa que ali estava, pouco mais não era do que uma estranha para aquela que no passado agarrava a vida de frente. Hoje, ela deixava fugir essa mesma vida e consigo a oportunidade de ser feliz.
Verdadeiramente feliz.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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