quarta-feira, 8 de julho de 2020

Micróbio de conto - GEÓRGIA ALVES

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Tem horas? Um minuto depois das dez. Mais um minuto se passou? Sim, quantas são, mais de dez? O segurança deu-lhe aquele olhar de desprezo. Sabe de nada inocente. De novo a pergunta, gritada mesmo: Mais um minuto? De megafone, as outras respondem, sim. Quantas já são? A cada dois minutos, e mais uma mulher foi morta. O abusador é você.
Dou mais uns passos, em direção ao melhor ângulo, tanta coisa acontece, elas se apresentam em roupas coloridas, algumas com criança a tiracolo. Mais dois minutos se passaram. São duas. Gritam. O abusador é você. O abusador é você.
Rela meio mundo para entrar no espaço apertado, a alcatifa nunca conheceu tantos tipos de pisantes, sandálias altas e baixas, havaianas, tênis e alpercatas de couro, meio mundo se espreme, e o rela mundo escuta a frase: o que sai da tua boca é trela? É nada, é rela. Tem rela pra ele? Tem nada.
Tem rela pra quem? Tem só para ela. E ele? Trepou ali no muro, faz seis minutos, seis minutos se passaram. Já são três. Três mulheres mortas. O abusador é você, o abusador é você, o abusador é você. O abusador é. Não tem nada não. Rela mundo. Quer acusar o mal dela ao nascer, o mal dele que ninguém aponte, pois reage. Agora quer se defender. Não tem nada a ver. O que dizem não tem nada a ver. Chamou de quê? Expôs o quê? Uma intimidade? A mulher dele rala, o dia inteiro. E cuida dele? E bem. Ele o que é que faz? Rela ela. A sogra dá de comer? E dá muito. Buchada, carne de cozido, pão com presunto. Ele come? Come tudo. Que faz dela? Em nome dela ele rela a mulherada também. Rela a mulher, rela a sogra, rela mais alguém? Rela a empregada, é claro. Dia sim, dia não. Sem motivo. Contratou para dar rela.
Quatro minutos se passaram. Já são quatro. O abusador é você, o abusador é você, o abusador é, o abusador. E você? Ele rela? Também rela. Por que, não?
E o que foi que você fez? Não te chamou, aqui? Falta de educação. Chamar chamou. E não era para você vir? Para vir ver se o ralador rela? Rela, é mulher ele rela. Pode ralhar você. Motivo de pisa? De jeito nenhum.
Não tendo motivo, inventa um. O abusador é o encanador? O abusador é o professor? O abusador é o rei, é qualquer acusador. O abusador é você. O abusador é você. O abusador é quem desfere frases contra elas. E diz alto, pelos entroncamentos, pelos becos, vielas, pelos encanamentos do castelo, que ela não serve, não faz bem isso, não faz bem aquilo. O abusador é o cantor? O abusador é o doutor? O abusador é. Cinco minutos se passaram. Já são cinco mulheres mortas, muitas a punhaladas.
O abusador é José? É João? É nada. É rela do rala-e-rola. O abusador é de que cor é? É preto, é branco? É preto no branco? É judeu, muçulmano, é ateu? Católico, o abusador reza, se despreza. O Cristo leva. E o que tem na mão? Rela leva o terço e rela com a cruz, diz palavras contra o salvador? De jeito nenhum, só xinga mulher mesmo. Virgem Maria. Atira pedras. Já são seis. Quem pensa que é? Ele é. O abusador. E o abusador é você?

Este texto é para ser lido ouvindo Caetano Veloso. You don’t know me.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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