quarta-feira, 29 de julho de 2020

Menina morta - TEREZINHA PEREIRA

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Do fogaréu ela nunca se esqueceu. O quarto ardente. A lamparina acesa. O odor forte do querosene. O negror da fumaça. A irmã caçula, um bebê de seis meses, a dormir na rede. Estava ela com oito anos de idade.
Anoitecia. O pai andava por aí. A mãe, com as irmãs mais velhas, havia ido à missa. Ela separava roupas da família que a mãe deixara sobre a cama para serem alisadas no dia seguinte. Cedo, quando a mãe pusesse fogo no forno para assar as quitandas, a irmã mais velha pegaria as brasas para o ferro de passar. A irmã caçula resmungara. Para que não despertasse, a menina embalou-a na rede. Teria esbarrado na lamparina? De repente, o fogo. O querosene derramara nas roupas em que ela separava sobre a cama. A fumaça preta subia. O fogo ardia. A rede. O bebê na rede. Ela. Havia sido assim?
Num lampejo, veio-lhe à mente a lembrança de uma meia-irmã que morrera por causa de um incêndio. Ela não a conhecera. Quando ocorrera?
Um caso velado, jamais comentado em família. A irmã mais velha foi quem lhe contou. Soubera ela, só de ouvir, do caso de uma criança do primeiro casamento do pai, menina de um ano, teve o corpo inteiro ferido por queimaduras. Ficava na rede, envolta em folhas de bananeira. Fogo causado por lamparina caída. Quando ocorreu o acidente, com quem estava a desconhecida irmã? Com o pai? Ou com a mãe? O pai da menina morta, viúvo, casara-se com a mãe da menina agora com oito anos.
Levara quatro filhos do primeiro casamento. (Onde foi o incêndio? Na casa do sítio ou na casa da cidade?) Naquele instante, precisava se apressar.
Tinha que livrar a pequena que dormia na rede do perigo daquele fogo. (A pequena era a sexta filha do casamento do pai com sua mãe.) Não havia tempo para lembranças. Para suposições. Mas, por quê? Nem o pai, nem a mãe, nem as outras irmãs, nem os irmãos da parte do pai falavam da outra menina, da que morrera por causa do fogo. Sigilo absoluto. Quando alguma vez perguntou à mãe, ao pai ou a alguma tia, cada um desviara do assunto.
Quase sufocada pela fumaça meio ao fogo que se alastrava, ela alcançou a irmãzinha na rede.
A janela do quarto estava fechada. Custou a encontrar a porta do quarto. Com a criança nos braços, ela chegou à rua e gritou por socorro. Esta estava salva, não seria envolvida em folhas de bananeira, não morreria por causa de lamparina derramada. É do que se recorda.
Ela cresceu, casou-se, tornou-se mãe, avó, bisavó. Porém, jamais soube das circunstâncias do acidente ocorrido com a meia-irmã que havia morrido por causa de um incêndio. Contou-me esse fato quando já era bisavó.

Mãe, por que será que esperou tanto tempo para me contar?

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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