sábado, 25 de julho de 2020

Ginger Honey - SARA TIMÓTEO

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
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Há algum tempo que me endireitara. Agora, trabalhava num hospital e conseguira ascender, por via do trabalho contínuo e diligente, a uma posição em que trabalhava de segunda a sexta em horário de expediente. A minha vida figurava-se-me como uma reta aborrecida e sem final à vista. Contudo, a minha intuição dizia-me que esta rotina seria sol de pouca dura.
Gustavo era um homem bem-apessoado, de porte agradável e sorriso sempre pronto. Eu intuía que ele era cruel e, por esse motivo, afastava-me dele tanto quanto me era possível. Quando ele chegava à unidade de manhã, ia à minha pausa ou invocava inadiáveis compromissos noutro departamento do hospital. Assim imitámos o jogo entre o gato e o rato durante seis meses; e, como eu sabia desde sempre, nada de bom alguma vez nascera da imitação ou de jogos que se prolongam no tempo.
Olhares, toques e proximidade excessiva: a mercenária que havia em mim despertou de súbito e analisou este homem de maneira aturada e paciente.
Em caso extremo, considerei ficar com ele uns quinze dias e depois provocar uma qualquer situação para que ele me abandonasse (uma orgia com amigas e amigos poderia provocar o efeito pretendido). Tê-lo-ia feito, sem hesitar um segundo que fosse, mas os olhos negros dele, sorvedouros destituídos de brilho, alertavam-me sobre a existência de um abismo de onde jamais regressaria.
Este homem jamais seria meu cliente, mesmo quando iniciara a vida aos 12 anos. Era um homem perigoso. Para mal de tudo o que me levara até ali, ele apercebeu-se de que eu o desmascarara e iniciou o ritual de caça que sempre antecipava o grande gozo que sustentava a sua existência: matar.foder.destruir, obedecendo a esta ordem ou a qualquer outra. Mas a puta em mim era velha e sabia como defender-se. Esta era uma luta pela sobrevivência.
– Olá, Diana. Tudo bem?
Enfaixada num vestido de tafetá que me enlanguescia e aprisionada por uns sapatos de salto agulha num tom de azul-claro, murmurei que sim, que estava bem, mas com muito calor. Ele deu instruções à filha para nos deixar a sós e começou a tocar-me nos ombros e nos cabelos com grande afã.
Apartei-me dele e do cheiro que me repugnava tanto quanto pude. Céus, quantos quilómetros calcorreei naquela festa para que ele não me visse!
A fuga teve fim no momento em que a menina me seguiu para a casa de banho e afirmou ter medo de estar sozinha dentro dos lavabos.
Infelizmente para a menina, irritei-me com a perseguição velada e comecei a praguejar na minha língua de rua, diversa da fluência polida em língua inglesa que toda a gente admirava e invejava no hospital.
– Fucking wannabe hoe!
Logo surgiram três ou quatro matronas com ar preocupado que levaram a menina para longe da minha influência perniciosa. Fui convidada a sair da festa por ofensas perpetradas à moral e aos bons costumes, não sem que antes ele viesse falar comigo.
– Nunca pensei que tratasses assim a minha filha. Parece que não te conheço de todo, e é pena, porque sempre achei que tínhamos uma certa química.
– Não tenho de me justificar perante ti. Tu não me conheces, de facto. O melhor é ir-me embora. Até mais!

Neste momento, caros leitores, ouvintes e telespec(t)adores, o tiquetaque do relógio Richard Mille Caliber RM 019 Celtic Knot Tourbillon que comprei quando logrei sair das ruas mede os passos que me separam do confronto final com o meu predador atual. Antecipo este rendez-vous com a paixão que coloco nas soluções elegantes para qualquer problema.
O meu nome de guerra é Ginger Honey. A vida de rua em Santa Fé onde a minha mãe me largou com 11 anos para que o meu pai não nos encontrasse trouxe-me uma afeição desmesurada a três coisas nesta vida: foder, matar e ter muito dinheiro. São necessidades legítimas que encontram abrigo na alma de qualquer rapariga honesta e, com recurso a alguns instrumentos que transporto comigo, em breve poderei satisfazê-las.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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