quarta-feira, 15 de julho de 2020

Chapada - KATIA GILABERTE

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Na noite fria, seca, sem lua, o brilho das estrelas se sobrepõe à luz artificial do aglomerado de casas do povoado. Escorpião, como uma enorme pipa, domina o céu de junho e a chapada é só uma silhueta adivinhada em meio à escuridão que envolve a terra. Esta paisagem, para outros corações talvez desoladora, me aquece e me basta. 
Foi preciso voltar sozinha, e rever a chapada com meus próprios olhos – e já não sob o filtro dos teus olhos escuros e inquietos -, para compreender o quanto eu a amava.
O sobressalto do primeiro regresso, ainda doído de memórias, cedeu logo ao conforto do reconhecimento da serra recortada contra o azul sem nuvens da manhã, do casario bizarro, da gente preguiçosamente feliz, da enxurrada de flores que tinge de violeta as encostas no outono tropical, da zoeira dos periquitos e araras, do crepúsculo que preenche de vermelho e laranja a amplidão do horizonte. O reencontro com a água fria e límpida dos rios pedregosos limpou-me o corpo e a alma: estão cicatrizadas todas as feridas.
De ti recebi veneno e antídoto. A chapada, avassaladoramente bela, não admite mágoas ou tristezas. E, com a serenidade que não permitia outrora meu coração apressado, que acompanhava um compasso alheio, posso agora finalmente apreendê-la.
Com a chapada recapturo minha infância: ando descalça sobre a terra batida e o mato, sinto o sol e a chuva sobre a pele nua, escuto o vento. Pouco a pouco, ela me ensina a saborear o tempo, sem medo e sem angústias, e a distinguir, para além do cinza aprisionante do concreto e do asfalto, as delicadas cores e matizes da Natureza. E, à noite, a fitar o céu e procurar estrelas.
É diverso o céu que encobre a tua cidade distante e, se acaso o ritmo frenético que imprimes a tua vida te permitir também fitá-lo, verás diferentes estrelas, em completa assimetria com as que avisto da chapada. Está certo.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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