terça-feira, 28 de julho de 2020

Balada da garçonete - SOLANGE PADILHA

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Um pouco pensando nele que chegando de viagem foi direto para cama e dormiu mais de 24 horas. Sem levantar. Forte o desejo de acordá-lo. Curiosa com as novidades. O que diria deixando-a satisfeita e despreocupada com a volta pra casa. No inverno ela trabalha até tarde. Não consegue pagar a cota do celular. Se fosse algum tempo atrás poderia imaginar um cineasta ou poeta lhe dedicando uma obra. Ela como atriz ou personagem principal de um seriado.
Pouco importa. Uma garçonete ralando em pé não está interessada ou seduzida em tornar-se estrela de um filme. Acha desinteressante. Também pagam mal. O que lhe interessa? Lembrou-se de alguém que dizia filme bom é documental. Seria o mesmo que dizer toda vida vale como documento? Ou é melhor como ficção? Não sei. Preferia ser referência para ele que num lance de olhar a seguia como passante anônima na multidão. O que vale viver personagens?
Melhor ativar a revolução, mudar a realidade como ela mostra desejar de modo explícito no corpo todo coberto por tatuagens, invento de um enigma, mural de pensamentos e espécie de teatralidade das escarpas urbanas renascendo em traços. Não mais, boca, olho, nariz, mas algo como “eu vim de um lugar sem teto.” Ou, “se você seguir pela linha do meu pescoço vai encontrar um mundo que gira no sentido contrário ao relógio”. Transfiguração.
Como um pedaço de mundo ela tem de movimentar- se como garçonete em pé com a cabeça raspada sobre o balcão. Primeiro teve um choque com as fotos daquelas mulheres de crânios translúcidos.
Rejeitadas, desonradas, cuspidas feito coisas estragadas fora do prato. Rápido sentiu que não podia ser diferente. Entende a semelhança a condição de mulher sem sobrenome. Imitou-as tosando os cabelos daquele jeito. Mulheres em guerra. Mulheres que não esperavam mais ele acordar e ainda assim desejava continuadamente que lhe afague o pescoço conversando com ela em muitas línguas entre uma e outra explosão. Mas no comando do mundo se movimentam múltiplas direções sem nenhuma função adequada ou disponível. E todos os dias ela dá sua largada drenada no balanço de mamilos e neurônios, urinando feito homem na rua, e pulsa e aperta o passo antes do gás de pimenta explodir e depois de servirem à sopa. A guerra não termina. E outra estoura no rastilho do anoitecer.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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