domingo, 12 de julho de 2020

A casa do mangue - JACQUELINE MEIRE

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
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Começo a juntar meus pertences. Mas antes passo uns minutos olhando pela janela dos fundos, por onde posso ver o mar. Meus olhos primeiro alcançam as árvores, que sacodem suas folhas com delicadeza.
Decido começar pelo quarto. Onde se dorme normalmente se tem aconchego. Onde há acolhimento, demora-se em evadir. Neste espaço delimitado encontro o cheiro conhecido dos dias tranquilos e felizes.
Os livros são os primeiros a entrarem em uma grande caixa. Onde realmente estou, será possível encontrar um livro meu. Comprar ou ganhar livros é sempre um ato de acolhimento. Falo dos exemplares que passam pela porta de casa. Os que andam nas bolsas, passeiam e até viajam. São aqueles que dediquei tempo foleando, decifrando, aprendendo, marcando, desenhando com suspiros ou lágrimas.
É bem verdade, estes nunca são os primeiros a chegarem. É necessário avaliar a segurança para trazê-los um a um. Nunca se sabe o nível de mofo, possibilidades de goteiras e traças. Melhor não arriscar. Mas quando meus livros saem, significa que eu já não estou, ainda que meu corpo possa
demorar-se por mais tempo.

O tempo de arrumação, pensamentos se delonga sem que me der conta. Pela janela do quarto vejo a noite chegar em suas cores. Um quase frio chega tímido variando a temperatura. Paro para descansar. Volto à janela dos fundos. A maré já está vazada. Um pescador abaixa-se repetidas vezes afundando sua mão na areia escura. Um barco pequeno deitado ao lado completa o cenário.
Horas todo visível era água. Mariscos protegidos.
Mais uma vez novo ciclo de idas e vindas. Sim e não. Ter e faltar. Mudanças que vem, mesmo que seja bom, mesmo que seja ruim. As lutas perduram.
Os caranguejos que saem das tocas para comer e andar. O marisco que sobe para respirar. A marisqueira que sai para catar. Eu ali pensando nos quefazeres. Agradeço por tantas vezes pude ver o sol nascer. Penso no quanto esqueci de dar valor durante estes momentos. Saudosa me despeço.
Na lembrança o prazer de rabiscar. Traçar ideias em textos. Rimar em poemas neófitos. A letra foi encontrando um compasso, um ritmo, uma finalidade. A respiração encontrou a calma. No abrigo da casa, da alma, na paisagem que me acolheu. Pude tornar-me mais eu. Ir para além dos objetos. Aprender ser quem se é, liberta para ser além. Os livros puderam ir, porque o espaço já estava em mim. Virou memória. Transformou-se em letras. Virou força no meu eu. Transfigurou-se em história.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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