domingo, 28 de junho de 2020

Suspiro de uma folha - ANA MENDES

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Num pensamento ou prosa queixei-me do meu destino.
Quem me dera ser flôr, uma rosa.
Qual teria sido o meu caminho...
Foi suave e meigo o teu tocar
Doçura enganadora de quem te quer abandonar.
Olhando para cima ou para trás vos vejo a todas
Hesitantes, angustiadas, aos tremeliques e arrepiadas
Bebendo o resto de seiva que vos resta antes da queda.
Algumas ainda que amedrontadas
mostram arrogância e mesmo certa petulância.
Ainda estão formosas e pouco se lhes notam
O clarear das margens e o enrugar do meio que seca.
O segurar do ramo, a energia correndo ainda no seio.
Sem tapete vermelho, sem paraquedas aberto,
Apenas um chão descampado, uma rajada de vento.
Cobrimos os solos, os passeios, marcamos o tempo
Despimos aquela que nos acolheu sem medo.
Que nos viu de pequeninas a moças e de mulheres a loucas.
Primeiro tão inseguras, mas cheias de garra
Enfrentando tudo ou mesmo nada que agarra.
Concorrentes das flores que cantavam à desgarrada,
Por estações passamos e por pouco ou tudo lutamos.
Dos seres que se poisavam, mordiam e se alimentavam,
Sofridas fomos avançando, cobrindo certos botões
para que ao fim chegassem em plena beleza e formosas.
Ò vida do mundo quente e frio das mágoas e arrepios...
Que nos fazes tudo amar e desaparecer no nada.
Quase me arrependo do feito, que para pouco serviu,
aqui estou caída sem leito, na madrugada
Vencida pelo tempo, pela chuva e ne terra abandonada.
Olhai, olhai, esta pobre folha amarelada
Que um dia já cantou com os pássaros,
Por uma vida deixou escorrer a orvalhada...
Perdi a côr sim, todos os dias que passaram
Não o fiz por vaidade, mas sim pela lei da vida, pela idade.
Ò chão que serás meu leito, que me acolhes
Perde-me na tua noite, o repouso merecido oferece-me...
Que me recebes em teus braços, com a terra me envolves.
Humedece-me, decompõe-me, adormece-me.
Que me seja leve a terra, que morna esteja preparada
Quero que fique aqui escrito, que de ti árvore minha amada
Te levo na memória, no coração e na alma destroçada.
Não estava ainda na minha hora, caro vento que me arrancas-te.
Tinha ainda na memória tanto para dar e ver,
tanto que na vida me encanta o querer...
Se me deixar assim ficar, pouco de mim te lembrarás,
Se me puser a correr pelo ar, empurrada pelo vento
Mais longe irei, talvez até me possas ainda amar...
Abraçarei o teu tronco, rodopiarei por teus ramos
Beijarei o teu cimo, devagar, bem lento
se a valsa durar... se durar mais tempo.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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