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Escrever escrevinhar amassar o pão sulcar o mar sem âncora espargir o vento trançar o oculto emaranhado nas franjas do silêncio fecundar o cosmo fraudar o bom destino santificar o desastre insólito dançar a toda vela em noite de solstício cair a tarde para o desvio o verbo esquivo o suave poderio a voz em prumo compor traquinagens de velha risonha saltar as poças da desordem e do corpo em desalinho confiar no aumento da forte chuva no fosso fundo do anoitecer nos calafrios do sonho em flor nos vultos que assomam das covas confiar no nada sempre o nada em porto mundo.
Escrever é a corda alerta sobre o abismo. Uma corda frouxa, tremendo, tossindo, vergada sobre o nada resoluto. Sigo com os dedos encurvados nus para não decair na imensidão. Estou repleta de palavras, que desafiam a quietude da mente, como se as embalasse em meu avental de padeira, enquanto ouço o crepitar do forno. Inspirada pelo movimento das águas no controle das emoções, posso com as palavras me acalmar, acender a lareira, esconder o perigo da porta sem trancas. Posso mais que tudo afugentar o estigma da herança. Ou mesmo dançar a toda vela em noite de solstício. Catar conchas nos cabelos enquanto espero o pão estufar. Entre os anéis dos cabelos, sinto as ideias escorrendo como frutos maduros sobre o avental alvo, tão bem quarado para os deleites da cozinha. As quantas conchas espargidas dos caracóis se vão cair na saia, como praia salpicada. A traquinagem das palavras forma maranha em meu silêncio, ocultando-se da mente soberana.
Catar conchinhas é para crianças espertas, mas a pobre mão, confusa de esbarrar do cimo a ponta nos cabelos anelados, é inocente aos desvios da palavra duende. Matreira como cavalo de guerra, a palavra se esquiva dos dedos maduros, para em seguida ressurgir e num instante desaparecer. Os nós se adensam na mão ansiosa, buscando com afinco desenrolá-los para o forno vigiar.
O pão cresce e os dedos mais se embaraçam no jogo endiabrado. As mãos que pensam, sovam e fecundam a massa em forma única babam como tolas ao capricho das palavras. Essas mesmas mãos que empalideceram a receita da família caduca sucumbem no jogo aflito de compor uma história. Mão-boba - atiça o duende. Moleque rebelde, devolva as ideias que são minhas – suplico, sem notar que pisei exatamente na armadilha bem tramada do ardiloso duende. Com os olhos iluminados pela vitória, proclama o esperto: Ideias suas?
De quem são as ideias senão do porto mundo?
As mãos empalideceram e pousaram mudas sobre o avental pontilhado de conchas, que já não são as estrelas de acender o céu ou a abertura a outros mundos; nem tampouco a massa de fecundar o cosmo, o sopro de espalhar o vento e fraudar um destino sem desastres.
Só a palavra fugida poderia iluminar as pedrinhas do mar. As muitas conchas agora são tão-somente a pequena colheita da confiança, um amuleto para seguir em frente, em meio à noite escura, à chuva forte e aos espíritos que se elevam das covas. Só a confiança, que não desvia o verbo para além do nada sempre o nada.
Me levanto do toco de pedra com as pernas em desalinho e a cabeça em desordem.
Brincar com as palavras em mar repleto de criaturas desconhecidas era um desafio sem regras e sem comandante; a boa intenção de compor a tarde com pão e poema resultou em cozinha cheia de fumaça e um enxame de palavras difusas.
EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA
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