Agradecemos à autora SOLANGE PADILHA pela disponibilidade em responder ao nosso questionário
1 - Qual a sua percepção para essa pandemia
mundial?
Penso que existem várias questões O impacto e
disseminação da pandemia em curtíssimo tempo descortina nossa fragilidade
humana e traz para primeiro plano, o significado da responsabilidade social, o ser
e pertencer à espécie humana. Desacelerar é palavra chave para criar novas
atitudes, pensamentos e ações. Somos parte de um sistema orgânico e há urgência
de resolver desigualdades e harmonizar e reequilibrar a vida no planeta.
2 - Enquanto autora, esse momento
afetou o seu processo produtivo? Em tempos de quarentena, está menos ou mais
inspirada?
Sim, claro, afetou muitíssimo. Nos últimos 50 dias vivo
outra experiência com o tempo e o espaço. Pertenço duplamente ao grupo de risco
e organizar questões práticas e guardar cautela redobrada em relação a pandemia
interferiu diretamente no cotidiano das atividades literárias dentro e fora de
casa.
Além do vírus, a situação no Brasil hoje é
rocambolesca, e os problemas políticos e sociais se avolumam na mesma proporção
da pandemia. Tudo isso desorganizou bastante o cotidiano de escrita. Faço
anotações, pequenos textos para a internet, revisão de textos já existentes.
Infelizmente, muitas vezes não sobra tempo para
inspiração
3 - Quando isso passar, qual a lição que ficou?
Como sugeri anteriormente, espero que haja um fluxo
de consciência sobre o que estamos construindo para as futuras gerações; Se
isso vai acontecer? É uma interrogação, estamos no meio do turbilhão. Mas
acredito que haverá mudanças significativas.
4 - Os movimentos de integração da mulher
influenciam no seu cotidiano?
Tenho um longo percurso no feminismo. Pertenci ao
que se convencionou chamar no Brasil, de segunda onda, anos 70. Vivi o autoexílio
em Paris, participei de grupos de mulheres brasileiras exiladas e também do
Movimento de Libertação das Mulheres (MLF) da França. De volta ao Brasil reuni-me
a outras mulheres e criamos o primeiro jornal feminista brasileiro, Nós
Mulheres. Escrevi sobre o tema mulher para jornais de oposição, pesquisei
grupos de mulheres operárias, e ajudei a organizar os primeiros encontros que
reuniram milhares de mulheres da periferia a partir de uma pauta de resistência
política e feminista, e isso no Brasil da época era uma novidade. Com a atriz
Ruth Escobar, fizemos o 1 Festival das Mulheres nas Artes, reunindo mulheres de
todo o Brasil e, também internacional. Eu organizava a parte de literatura e
artes plásticas. Cora Coralina que faria 90 anos naquele ano foi a homenageada
especial e contamos com a presença das escritoras
portuguesas, Isabel Barreno, Natália Correa e Lídia Jorge. Foi um acontecimento
incrível e inovador.
Com a volta ao estado de direitos me afastei dos
movimentos de mulheres, retornei ao Rio de Janeiro para dar foco à escrita de poemas
e ensaios, retomei minha formação acadêmica e convivência com grupos indígenas.
Em 2014 me chamaram para participar do grupo feminista A #partida, escrito assim
mesmo em minúscula, criado pela filósofa Marcia Tiburi. Nasceu com o objetivo
de impulsionar mulheres a ingressarem na política. Deste grupo fez parte
Marielle Franco que se elegeu vereadora nas eleições de 2016. No ano seguinte
era criado o Mulherio das Letras, ao qual pertenço desde então.
5 - Como você faz para divulgar os seus escritos ou
a sua obra? Percebe retorno nas suas ações?
Essa é a parte mais complicada. Tenho três livros
de poemas publicados por pequenas editoras e que não foram relançados, salvo Dadá anda ainda um livro poema-objeto
de 1992 que relancei 60 exemplares durante a FLIP de 2018. Grande parte de meu
trabalho é desconhecido. Publico online, em sites específicos, na minha página
de autor, no meu perfil do Facebook. No Rio de Janeiro existe grande quantidade
de saraus e houve época em que fui assídua e divulgava meu trabalho através de
leituras públicas. Poesia no Brasil tem um publico relativamente restrito e
flutuante. Como também faço poesia visual, participo de grupos e movimentos ligados
a este segmento da poesia com interface nas artes visuais.
6 - Quais os pontos positivos e negativos do
universo da escrita para a mulher?
Essa pergunta é ao mesmo tempo simples e complexa. Penso
que os pontos negativos, são aqueles que há séculos invisibilizam a própria
presença e criação das mulheres na literatura, como em outros campos da historia
cultural, social e política, com inúmeros preconceitos, restringindo sua
participação ou diminuindo-a, ou ainda, ignorando seus trabalhos e livros, “esquecendo”
de citá-las ou de incluí-las em compêndios de literatura, enciclopédias,
academias. Os positivos são principalmente aqueles que nasceram de uma consciência
dessa invisibilidade, das lacunas, das perdas, afinal como seriam os poemas de
Safo, a grande poeta do VI século antes da era cristã, além dos raros
fragmentos que nos sobrou? Muito importante também a determinação de escritoras
dos séculos XIX e XX que escreveram e criaram como grandes escritoras e também
aquelas teóricas, filósofas que pensaram seu tempo e a condição feminina e se engajaram em lutas por direitos sociais
e políticos, Hoje pesquisadoras mulheres, mas também homens, têm se dedicado a
um trabalho quase arqueológico e revelam nomes e escritas até então ignorados, e relegados ao esquecimento
pelos críticos literários. Vivemos um momento de intensa criatividade e sou
otimista. Acho que estamos reinventando novos parâmetros do que seja a
literatura. Afinal uma metade da humanidade silenciada por séculos, está
surpreendendo e deve continuar a surpreender a todos aqueles que dominaram a
palavra escrita.
7 - O que pretende alcançar enquanto autora? Cite
um projeto a curto prazo e um a longo prazo.
Acabei de escrever um livro de poemas e espero em
breve terminar a revisão do que será meu primeiro livro de contos. Até mês
passado, a previsão da editora era fazer o lançamento no primeiro semestre
deste ano. Acredito que será prorrogado para o segundo semestre. Também quero
fazer em São Paulo uma exposição dos poemas visuais que foram expostos pela
primeira vez aqui no Rio ano passado e em janeiro deste ano. Espero uma trégua
da situação atual que permita retornar os projetos.
A longo prazo, quero continuar escrevendo, continuar
pesquisas sobre a escrita da mulher, e também desenvolver o campo da expressão
visual. No Brasil, a poesia se popularizou através da música, das letras de
canções de extraordinários poetas que tornaram nossa musica popular brasileira
de uma riqueza imensa e muito abrangente. Mas tenho muita vontade de incentivar
conversas com jovens sobre a palavra, sobre as possibilidades que o simples
dizer carrega e como seu sentido poético é uma belíssima arma para a vida. Penso
mundo nesse universo feminino que está surgindo e como estabelecer postes com
ele através da leitura, do dizer. A escrita é tão sutil que o desafio é inesgotável.
Se der tempo, quero me ligar cada vez mais com o mundo que estamos vivendo no
que ele trás de novo e me sabendo de outra geração poder dizer como ele me
atravessa. E, se possível encontrar leitoras e leitores para dialogar.
8 - Quais os temas que gostaria que fossem
discutidos nos Encontros Mulherio das Letras em Portugal?
Há alguns anos me interesso sobre a relação entre
poder literatura e autoria de mulheres. Já na época do jornal Nós Mulheres, há
quarenta anos, me intrigava a ausência
da mulher entre os escritores. Escrevia pequenos ensaios, mas tomei outros
rumos. Em 2018 escrevi um pequeno ensaio sobre a criação contemporânea gestada
pelo fluxo de consciência que vem se desenvolvendo desde o século XX com maior
visibilidade. Este ano, em março, participei de um seminário também sobre o assunto.
Um encontro de escritoras é uma ótima oportunidade de pensar falar e trocar
ideias sobre mulher e literatura.
9 - Sugira uma autora e um livro que lhe inspira ou
influencia na escrita.
Primeiro devo dizer que não tive uma formação
acadêmica e regular. Tanto me influenciaram livros quanto filmes. Antes de
saber ler, aos cinco anos já ia ao cinema com minha mãe todas as semanas.
Sempre fui muito ligada ao teatro, que corresponde a minha formação ginasiana,
e as artes visuais Me parece que isso leva a outra dinâmica da escrita, algo
peculiar a minha geração. Foi a partir da relação com o feminismo que se deu
muito cedo que me interessei por autoras, pelo pensamento de Simone de
Beauvoir, teóricas revolucionárias da época da Revolução Francesa ou dos
primeiros momentos do socialismo. A
leitura de romancistas ou mesmo de poetas se deu mais tardiamente. Inicialmente
predominaram os homens.
Me limitando à poesia, durante muitos anos fui obcecada
por Rimbaud. Meados dos anos 70 é tempo da chamada poesia marginal, geração
mimeógrafo, onde surgem uma profusão de poetas mulheres jovens, os hacai de Matsuo
Bashô ou Leminski , o tropicalismo e os grandes letristas da nossa canção e do
samba. Mas quando decido que finalmente vou escrever poesia, posso dizer que a
poesia de Ana Cristina Cesar e seu livro
A teus pés, me tocou fundo e foi
definitivo para o meu entendimento
do que seria uma linguagem diferente daquela que lia em poetas da época ou dos
que já eram clássicos brasileiros. Hilda Hilst, extraordinária e Clarice
Lispector também, pela densidade e sinceridade interior, pela maneira como do
banal revelava o terremoto que está sempre pronto a eclodir do subsolo. Perto
do Coração Selvagem causou-me um impacto tremendo há algumas décadas. Com essas
autoras descobri que o mal estar interior ou aquela minha necessidade de ir
buscar o que está ainda mais submerso e, a dificuldade de expressá-lo, podiam
se tornar uma escrita, uma assinatura. O não saber deixou de me paralisar.
Entendi que tanto eu quanto a língua era misterioso mesmo. e o enigma era saber
como tornar uma experiência muito particular numa linguagem, descosturando o já
feito. Além dessas autoras, existe uma
enormidade de boas escritoras hoje no Brasil. Muitas poetas vindo das
periferias com novos linguajares, novas propostas que renovam o já estabelecido,
além das autoras negras. Como romanistas ou ensaístas Maria Valeria Resende, Lygia
Fagundes Telles, Conceição Evaristo, sem falar de uma geração de pesquisadoras
que desvendou e está desvendando minuciosamente nomes do passado e o papel da
mulher na nossa literatura. São inúmeras e muitas talentosíssimas as escritoras
que se reúnem no Mulherio das Letras por todo o Brasil.
10 - Qual a pergunta que gostaria que lhe fizessem?
E como responderia?
Por exemplo, “O que espera da vida aos 70 anos?”
- Muitas pessoas acham que existe uma idade para
dizer as coisas e que passado um período não se têm muito mais a dizer. Eu
recomecei minha vida muitas vezes. Mudei de rumo muitas vezes. Não acreditei na
morte por um longo período, malgrado as evidências. Como muitos já disseram,
não me arrependo, tive e tenho uma vida muito rica, nem um pouco estável, mas
rica. Quero ter coragem para mudar quantas
vezes ainda forem preciso. É claro, somos seres biológicos e a vida um
acontecimento imprevisível. Sendo assim, continuo enamorada dela, em busca de
melhorar a mim e toda esta parafernália que é esta viagem no planeta Terra.
Diria que ainda estou longe de me dar por satisfeita. E embora a situação seja
adversa, acho que na sua inutilidade, o ser humano aqui está para viver o
espanto como um canto de guitarra a tristeza nas cordas do violoncelo e o
desassossego ou alegria da poesia e não havendo instrumentos para fazer de
qualquer utensílio um ritmo que enalteça a vida, o viver. Somos todos artistas
natos de nós mesmos, e todos juntos somos os únicos a querer igualar sua
pequenez ao imenso universo. Sendo parte dele, não é um exagero, mas um
propósito razoável, desde que nos entendamos como o bem mais precioso e
respeitado por todos e para todos. Se
ainda der tempo, e puder escrever uns dois livros de poemas... tá ótimo!
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