quinta-feira, 4 de junho de 2020

DEZ PERGUNTAS MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL - SOLANGE PADILHA



Agradecemos à autora SOLANGE PADILHA pela disponibilidade em responder ao nosso questionário


1 - Qual a sua percepção para essa pandemia mundial?

Penso que existem várias questões O impacto e disseminação da pandemia em curtíssimo tempo descortina nossa fragilidade humana e traz para primeiro plano, o significado da responsabilidade social, o ser e pertencer à espécie humana. Desacelerar é palavra chave para criar novas atitudes, pensamentos e ações. Somos parte de um sistema orgânico e há urgência de resolver desigualdades e harmonizar e reequilibrar a vida no planeta.

2 - Enquanto autora, esse momento afetou o seu processo produtivo? Em tempos de quarentena, está menos ou mais inspirada?

Sim, claro, afetou muitíssimo. Nos últimos 50 dias vivo outra experiência com o tempo e o espaço. Pertenço duplamente ao grupo de risco e organizar questões práticas e guardar cautela redobrada em relação a pandemia interferiu diretamente no cotidiano das atividades literárias dentro e fora de casa.
Além do vírus, a situação no Brasil hoje é rocambolesca, e os problemas políticos e sociais se avolumam na mesma proporção da pandemia. Tudo isso desorganizou bastante o cotidiano de escrita. Faço anotações, pequenos textos para a internet, revisão de textos já existentes.
Infelizmente, muitas vezes não sobra tempo para inspiração  

3 - Quando isso passar, qual a lição que ficou?

Como sugeri anteriormente, espero que haja um fluxo de consciência sobre o que estamos construindo para as futuras gerações; Se isso vai acontecer? É uma interrogação, estamos no meio do turbilhão. Mas acredito que haverá mudanças significativas.

4 - Os movimentos de integração da mulher influenciam no seu cotidiano?

Tenho um longo percurso no feminismo. Pertenci ao que se convencionou chamar no Brasil, de segunda onda, anos 70. Vivi o autoexílio em Paris, participei de grupos de mulheres brasileiras exiladas e também do Movimento de Libertação das Mulheres (MLF) da França. De volta ao Brasil reuni-me a outras mulheres e criamos o primeiro jornal feminista brasileiro, Nós Mulheres. Escrevi sobre o tema mulher para jornais de oposição, pesquisei grupos de mulheres operárias, e ajudei a organizar os primeiros encontros que reuniram milhares de mulheres da periferia a partir de uma pauta de resistência política e feminista, e isso no Brasil da época era uma novidade. Com a atriz Ruth Escobar, fizemos o 1 Festival das Mulheres nas Artes, reunindo mulheres de todo o Brasil e, também internacional. Eu organizava a parte de literatura e artes plásticas. Cora Coralina que faria 90 anos naquele ano foi a homenageada especial e  contamos com a presença das escritoras portuguesas, Isabel Barreno, Natália Correa e Lídia Jorge. Foi um acontecimento incrível e inovador.

Com a volta ao estado de direitos me afastei dos movimentos de mulheres, retornei ao Rio de Janeiro para dar foco à escrita de poemas e ensaios, retomei minha formação acadêmica e convivência com grupos indígenas. Em 2014 me chamaram para  participar do  grupo feminista A #partida, escrito assim mesmo em minúscula, criado pela filósofa Marcia Tiburi. Nasceu com o objetivo de impulsionar mulheres a ingressarem na política. Deste grupo fez parte Marielle Franco que se elegeu vereadora nas eleições de 2016. No ano seguinte era criado o Mulherio das Letras, ao qual pertenço desde então.

5 - Como você faz para divulgar os seus escritos ou a sua obra? Percebe retorno nas suas ações?

Essa é a parte mais complicada. Tenho três livros de poemas publicados por pequenas editoras e que não foram relançados, salvo Dadá anda ainda um livro poema-objeto de 1992 que relancei 60 exemplares durante a FLIP de 2018. Grande parte de meu trabalho é desconhecido. Publico online, em sites específicos, na minha página de autor, no meu perfil do Facebook. No Rio de Janeiro existe grande quantidade de saraus e houve época em que fui assídua e divulgava meu trabalho através de leituras públicas. Poesia no Brasil tem um publico relativamente restrito e flutuante. Como também faço poesia visual, participo de grupos e movimentos ligados a este segmento da poesia com interface nas artes visuais.

6 - Quais os pontos positivos e negativos do universo da escrita para a mulher?

Essa pergunta é ao mesmo tempo simples e complexa. Penso que os pontos negativos, são aqueles que há séculos invisibilizam a própria presença e criação das mulheres na literatura, como em outros campos da historia cultural, social e política, com inúmeros preconceitos, restringindo sua participação ou diminuindo-a, ou ainda, ignorando seus trabalhos e livros, “esquecendo” de citá-las ou de incluí-las em compêndios de literatura, enciclopédias, academias. Os positivos são principalmente aqueles que nasceram de uma consciência dessa invisibilidade, das lacunas, das perdas, afinal como seriam os poemas de Safo, a grande poeta do VI século antes da era cristã, além dos raros fragmentos que nos sobrou? Muito importante também a determinação de escritoras dos séculos XIX e XX que escreveram e criaram como grandes escritoras e também aquelas teóricas, filósofas que pensaram seu tempo e a condição feminina  e se engajaram em lutas por direitos sociais e políticos, Hoje pesquisadoras mulheres, mas também homens, têm se dedicado a um trabalho quase arqueológico e revelam nomes e escritas até  então ignorados, e relegados ao esquecimento pelos críticos literários. Vivemos um momento de intensa criatividade e sou otimista. Acho que estamos reinventando novos parâmetros do que seja a literatura. Afinal uma metade da humanidade silenciada por séculos, está surpreendendo e deve continuar a surpreender a todos aqueles que dominaram a palavra escrita.
 
7 - O que pretende alcançar enquanto autora? Cite um projeto a curto prazo e um a longo prazo.

Acabei de escrever um livro de poemas e espero em breve terminar a revisão do que será meu primeiro livro de contos. Até mês passado, a previsão da editora era fazer o lançamento no primeiro semestre deste ano. Acredito que será prorrogado para o segundo semestre. Também quero fazer em São Paulo uma exposição dos poemas visuais que foram expostos pela primeira vez aqui no Rio ano passado e em janeiro deste ano. Espero uma trégua da situação atual que permita retornar os projetos.
A longo prazo, quero continuar escrevendo, continuar pesquisas sobre a escrita da mulher, e também desenvolver o campo da expressão visual. No Brasil, a poesia se popularizou através da música, das letras de canções de extraordinários poetas que tornaram nossa musica popular brasileira de uma riqueza imensa e muito abrangente. Mas tenho muita vontade de incentivar conversas com jovens sobre a palavra, sobre as possibilidades que o simples dizer carrega e como seu sentido poético é uma belíssima arma para a vida. Penso mundo nesse universo feminino que está surgindo e como estabelecer postes com ele através da leitura, do dizer. A escrita é tão sutil que o desafio é inesgotável. Se der tempo, quero me ligar cada vez mais com o mundo que estamos vivendo no que ele trás de novo e me sabendo de outra geração poder dizer como ele me atravessa. E, se possível encontrar leitoras e leitores para dialogar.
 
8 - Quais os temas que gostaria que fossem discutidos nos Encontros Mulherio das Letras em Portugal?

Há alguns anos me interesso sobre a relação entre poder literatura e autoria de mulheres. Já na época do jornal Nós Mulheres, há quarenta anos,  me intrigava a ausência da mulher entre os escritores. Escrevia pequenos ensaios, mas tomei outros rumos. Em 2018 escrevi um pequeno ensaio sobre a criação contemporânea gestada pelo fluxo de consciência que vem se desenvolvendo desde o século XX com maior visibilidade. Este ano, em março, participei de um seminário também sobre o assunto. Um encontro de escritoras é uma ótima oportunidade de pensar falar e trocar ideias sobre mulher e literatura.

9 - Sugira uma autora e um livro que lhe inspira ou influencia na escrita.

Primeiro devo dizer que não tive uma formação acadêmica e regular. Tanto me influenciaram livros quanto filmes. Antes de saber ler, aos cinco anos já ia ao cinema com minha mãe todas as semanas. Sempre fui muito ligada ao teatro, que corresponde a minha formação ginasiana, e as artes visuais Me parece que isso leva a outra dinâmica da escrita, algo peculiar a minha geração. Foi a partir da relação com o feminismo que se deu muito cedo que me interessei por autoras, pelo pensamento de Simone de Beauvoir, teóricas revolucionárias da época da Revolução Francesa ou dos primeiros momentos do socialismo.  A leitura de romancistas ou mesmo de poetas se deu mais tardiamente. Inicialmente predominaram os homens.
Me limitando à poesia, durante muitos anos fui obcecada por Rimbaud. Meados dos anos 70 é tempo da chamada poesia marginal, geração mimeógrafo, onde surgem uma profusão de poetas mulheres jovens, os hacai de Matsuo Bashô ou Leminski , o tropicalismo e os grandes letristas da nossa canção e do samba. Mas quando decido que finalmente vou escrever poesia, posso dizer que a poesia de Ana Cristina Cesar e seu  livro A teus pés, me tocou fundo e foi  definitivo  para o meu entendimento do que seria uma linguagem diferente daquela que lia em poetas da época ou dos que já eram clássicos brasileiros. Hilda Hilst, extraordinária e Clarice Lispector também, pela densidade e sinceridade interior, pela maneira como do banal revelava o terremoto que está sempre pronto a eclodir do subsolo. Perto do Coração Selvagem causou-me um impacto tremendo há algumas décadas. Com essas autoras descobri que o mal estar interior ou aquela minha necessidade de ir buscar o que está ainda mais submerso e, a dificuldade de expressá-lo, podiam se tornar uma escrita, uma assinatura. O não saber deixou de me paralisar. Entendi que tanto eu quanto a língua era misterioso mesmo. e o enigma era saber como tornar uma experiência muito particular numa linguagem, descosturando o já feito.  Além dessas autoras, existe uma enormidade de boas escritoras hoje no Brasil. Muitas poetas vindo das periferias com novos linguajares, novas propostas que renovam o já estabelecido, além das autoras negras. Como romanistas ou ensaístas Maria Valeria Resende, Lygia Fagundes Telles, Conceição Evaristo, sem falar de uma geração de pesquisadoras que desvendou e está desvendando minuciosamente nomes do passado e o papel da mulher na nossa literatura. São inúmeras e muitas talentosíssimas as escritoras que se reúnem no Mulherio das Letras por todo o Brasil.

10 - Qual a pergunta que gostaria que lhe fizessem? E como responderia?

Por exemplo, “O que espera da vida aos 70 anos?”
- Muitas pessoas acham que existe uma idade para dizer as coisas e que passado um período não se têm muito mais a dizer. Eu recomecei minha vida muitas vezes. Mudei de rumo muitas vezes. Não acreditei na morte por um longo período, malgrado as evidências. Como muitos já disseram, não me arrependo, tive e tenho uma vida muito rica, nem um pouco estável, mas rica.  Quero ter coragem para mudar quantas vezes ainda forem preciso. É claro, somos seres biológicos e a vida um acontecimento imprevisível. Sendo assim, continuo enamorada dela, em busca de melhorar a mim e toda esta parafernália que é esta viagem no planeta Terra. Diria que ainda estou longe de me dar por satisfeita. E embora a situação seja adversa, acho que na sua inutilidade, o ser humano aqui está para viver o espanto como um canto de guitarra a tristeza nas cordas do violoncelo e o desassossego ou alegria da poesia e não havendo instrumentos para fazer de qualquer utensílio um ritmo que enalteça a vida, o viver. Somos todos artistas natos de nós mesmos, e todos juntos somos os únicos a querer igualar sua pequenez ao imenso universo. Sendo parte dele, não é um exagero, mas um propósito razoável, desde que nos entendamos como o bem mais precioso e respeitado por todos e para todos.  Se ainda der tempo, e puder escrever uns dois livros de poemas... tá ótimo!

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