Enquanto Quarentena
A nossa vida é como uma tela gigante onde registamos diariamente as nossas
ações, as nossas emoções, as nossas aventuras e, por vezes apenas nos
entretemos a desenhar garatujos (que até há quem diga que revelam muito sobre nós)
em momentos de um pensar mais profundo ou abstrato. Porém, nesta quarentena
obrigatória ou auto-imposta deparamo-nos com a nossa rotina desmantelada. Desmantelada.
Diferente. Dolorosa. Aborrecida.
Pensamos que iríamos ler todos os livros que tínhamos em “standby” na
prateleira ou a viajarem dentro das nossas bolsas, que iríamos pintar a
cozinha, consertar roupas, exterminar os lepismas que invadiram a garagem,
dormir mais ou até darmo-nos ao luxo de criar uma certa anarquia (ou letargia?)
à nossa volta. Tivemos a ideia de que para além do tele-trabalho.
Ainda poderíamos iniciar um hobby, uma nova e inovadora profissão. Quem
sabe. Tanta alternativa e tanto que fazer. Depois. Mas depois, à medida que os
dias passam, devagarinho, acordamos para a dura realidade e ao percebermos que
o vírus virou viral e que a sua devastação invadiu o mundo e o nosso raciocínio,
caímos nas incertezas, constatamos que não somos os maiores, que não somos
invencíveis e então pusemos logo de imediato todos os gadgets e redes sociais ao
nosso alcance a funcionar e os noticiários televisivos em todas as “células” da
nossa casa a noticiarem o que queríamos ouvir e a bombardear com as imagens que
queríamos ver e, desta vez, pelo menos, o spectrum da morte é verdadeiro. A
morte anunciada a cada segundo é verdadeira. A morte acontece. A morte reclama
vidas. É verdade que o “dito cujo invisível” anda á solta e rouba-nos a vida
com um ténue bafejo.
É verdade que nos priva dos nossos gestos mais nobres: dos beijos, dos
afagos.
É verdade que nos priva dos nossos direitos mais básicos e gratuitos - do
sol que através das vidraças o vemos sorrir, mas que por enquanto não é para
todos, e para quem já “partiu” este sol
já não faz falta - para sempre - aos nossos pais, aos nossos avós - para apenas
mencionar família.
Já disse que o sol sorri lá fora. A
primavera. Mesmo com um nó na garganta dizemos que a primavera chegou luminosa
e luxuosamente vestida de verde e flores. Muitas flores. Flores a bordear os
campos com as suas grinaldas coloridas, flores bordadas na relva onde aqui e
ali já uma ou outra papoila espreita. O sol a sorrir lá fora. A primavera meiga
e criativa. Andorinhas. Onde andam as andorinhas com o seu voar de rajada rente
ao chão e olho ligeiro.
Não as vemos. Só vemos as ruas austeras, tristes, silenciosas. As casas de
janelas fechadas à Morte. Ruas desertas e o silêncio. Silêncio aterrador onde
até as casas de Deus se fecharam. As casas de Deus. Fechadas. Ruas ermas onde
apenas anjos físicos lutam labutam para nos manter sãos e salvos nos nossos
próprios lares, confortáveis ou não, a pensar no que o futuro próximo nos
reservará, a pensar no futuro mais alargado que se adivinha ainda pandémico(?)
assolador ; ou podemos ansiar/imaginar um futuro sociocultural e económico
remodelado, numa estrutura mais humanamente abrangente. Mais inclusiva ou até
simplesmente desejando/acreditando num mundo verdadeiro, firme, transformando
as nossas reflecções em ações para que possamos contradizer Calderon de la
Barca:
La Vida és un Sueño
Que és la vida? Un frenesi.
Que és la vida? Una ilusion,
Una sombra, una ficcion.
Y
el mayor bien és pequeño
Que toda la vida és un sueño,
Y los sueños sueños son.
E podermos um dia abrir os braços
abrir os braços e dizer que a vida não é para se
entender. A vida é para se viver e,
ainda Calderon de la Barca:
La vida és un hermoso sueño
Y lo quiero vivir
despacio
Maria Esmeriz-Thomas
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