sábado, 25 de abril de 2020

Em tempos de quarentena - MARIA ESMERIZ-THOMAS


Enquanto Quarentena

A nossa vida é como uma tela gigante onde registamos diariamente as nossas ações, as nossas emoções, as nossas aventuras e, por vezes apenas nos entretemos a desenhar garatujos (que até há quem diga que revelam muito sobre nós) em momentos de um pensar mais profundo ou abstrato. Porém, nesta quarentena obrigatória ou auto-imposta deparamo-nos com a nossa rotina desmantelada. Desmantelada. Diferente. Dolorosa. Aborrecida.
Pensamos que iríamos ler todos os livros que tínhamos em “standby” na prateleira ou a viajarem dentro das nossas bolsas, que iríamos pintar a cozinha, consertar roupas, exterminar os lepismas que invadiram a garagem, dormir mais ou até darmo-nos ao luxo de criar uma certa anarquia (ou letargia?) à nossa volta. Tivemos a ideia de que para além do tele-trabalho.
Ainda poderíamos iniciar um hobby, uma nova e inovadora profissão. Quem sabe. Tanta alternativa e tanto que fazer. Depois. Mas depois, à medida que os dias passam, devagarinho, acordamos para a dura realidade e ao percebermos que o vírus virou viral e que a sua devastação invadiu o mundo e o nosso raciocínio, caímos nas incertezas, constatamos que não somos os maiores, que não somos invencíveis e então pusemos logo de imediato todos os gadgets e redes sociais ao nosso alcance a funcionar e os noticiários televisivos em todas as “células” da nossa casa a noticiarem o que queríamos ouvir e a bombardear com as imagens que queríamos ver e, desta vez, pelo menos, o spectrum da morte é verdadeiro. A morte anunciada a cada segundo é verdadeira. A morte acontece. A morte reclama vidas. É verdade que o “dito cujo invisível” anda á solta e rouba-nos a vida com um ténue bafejo.
É verdade que nos priva dos nossos gestos mais nobres: dos beijos, dos afagos.
É verdade que nos priva dos nossos direitos mais básicos e gratuitos - do sol que através das vidraças o vemos sorrir, mas que por enquanto não é para todos,  e para quem já “partiu” este sol já não faz falta - para sempre - aos nossos pais, aos nossos avós - para apenas mencionar família.

 Já disse que o sol sorri lá fora. A primavera. Mesmo com um nó na garganta dizemos que a primavera chegou luminosa e luxuosamente vestida de verde e flores. Muitas flores. Flores a bordear os campos com as suas grinaldas coloridas, flores bordadas na relva onde aqui e ali já uma ou outra papoila espreita. O sol a sorrir lá fora. A primavera meiga e criativa. Andorinhas. Onde andam as andorinhas com o seu voar de rajada rente ao chão e olho ligeiro.
Não as vemos. Só vemos as ruas austeras, tristes, silenciosas. As casas de janelas fechadas à Morte. Ruas desertas e o silêncio. Silêncio aterrador onde até as casas de Deus se fecharam. As casas de Deus. Fechadas. Ruas ermas onde apenas anjos físicos lutam labutam para nos manter sãos e salvos nos nossos próprios lares, confortáveis ou não, a pensar no que o futuro próximo nos reservará, a pensar no futuro mais alargado que se adivinha ainda pandémico(?) assolador ; ou podemos ansiar/imaginar um futuro sociocultural e económico remodelado, numa estrutura mais humanamente abrangente. Mais inclusiva ou até simplesmente desejando/acreditando num mundo verdadeiro, firme, transformando as nossas reflecções em ações para que possamos contradizer Calderon de la Barca:
                                                                      
La Vida és un Sueño
Que és la vida? Un frenesi.
Que és la vida? Una ilusion,
Una sombra, una ficcion.
Y el mayor bien és pequeño
Que toda la vida és un sueño,
Y los sueños sueños son.     

   
 E podermos um dia abrir os braços abrir os braços e dizer que a vida não é para se
 entender. A vida é para se viver e, ainda Calderon de la Barca:
   
La vida és un hermoso sueño
Y lo quiero vivir despacio

Maria Esmeriz-Thomas


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