quarta-feira, 4 de setembro de 2019

IN-FINITA APRESENTA... OUTROS TANTOS DE FLÁVIO ULHOA COELHO



Em vésperas do lançamento oficial do novo livro de Flávio Ulhoa Coelho, deixamos aqui o parecer de Krishnamurti Góes dos Anjos sobre OUTROS TANTOS


Belo exemplo de criatividade e sensibilidade em “Outros tantos” de Flávio Ulhoa Coelho
Por Krishnamurti Góes dos Anjos
Encontrar um diálogo oportuno e frutífero com o pensamento de grandes escritores do passado no que vem sendo publicado atualmente na Literatura é um achado gratificante. Sobretudo, quando boas ideias são redimensionadas sob um viés de criatividade e competência intelectual. Lembremos de um passado relativamente recente.
No ano letivo de 1985-86, o escritor italiano Ítalo Calvino (1923 - 1985) iria proferir palestras na universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Ele definiu como tema os valores literários que mereciam ser preservados no curso do próximo milênio; imaginou seis conferências e escreveu cinco. A morte prematura o impediu de concluir o seu trabalho, “Seis propostas para o próximo milênio.” Propostas que, segundo ele, seriam úteis para renovar a linguagem escrita contra “a peste da linguagem” e “o dilúvio das imagens pré-fabricadas”, males que estariam assolando a Modernidade. Tal peste se manifestaria como a perda de força cognitiva num automatismo que tende a nivelar a expressão sobre as fórmulas mais genéricas, anônimas, abstratas, a diluir os significados, a cegar as pontas expressivas, a apagar qualquer centelha que jorre do encontro das palavras com novas circunstâncias. Calvino estabeleceu afinal, Proposições a que deu os nomes de Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade, Multiplicidade e Consistência, esta última perdurando inconclusa. Propostas estéticas, que se imporiam como armas de resistência, meios de intervenção e de atuação do escritor em relação ao mundo.
Calvino entendia a Leveza (no sentido de retirar o peso das coisas), apontando para o peso existente no mundo, um peso que deve ser filtrado, amenizado pela operação literária. A partir da consciência da existência do peso que podemos e devemos buscar a Leveza. Tornadas leves, as coisas e os seres adquirem velocidade, escapando de qualquer controle. Por isso, não é à toa que Calvino escolhe a Rapidez como proposta que se seguirá imediatamente à da Leveza. Sem jamais perder de foco o mundo não escrito, Calvino contrapõe a Rapidez que ele propõe para a Literatura, à velocidade que percebe nos meios de comunicação. Por isso, também no início da sua segunda conferência, ele adiantou que “o valor que quero recomendar é justamente este: em uma época em que outras media velocíssimas e de extensíssimo raio triunfam, e arriscam achatar qualquer comunicação em uma crosta uniforme e homogênea, a função da literatura é a comunicação entre aquilo que é diferente em tudo quanto é diferente, não camuflando, mas exaltando a diferença, segundo a vocação própria da linguagem escrita”. Vemos assim a Rapidez como instrumento de comunicação direta, para fazer contato com Tudo. Acrescentemos que a Rapidez também nos serve para que possamos ver e captar as coisas sem que elas passem pelo controle, pela análise do consciente, como se ao mesmo tempo as surpreendêssemos e fôssemos surpreendidos por elas.
Já a definição de Exatidão, se baseia em três pontos, a saber, 1) o desenho da obra bem definido e bem calculado; 2) a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis, e 3) uma linguagem a mais precisa possível como léxico e como demonstração das nuances do pensamento e da imaginação. A comunicação exata entre as coisas. O uso exato e justo da palavra, “associa o rastro visível à coisa invisível, à coisa ausente, à coisa desejada ou temida, como uma frágil ponte de fortuna lançada sobre o vazio. Já em sua proposta da Visibilidade, Calvino chama a atenção para o fato de que é por meio da capacidade de imaginar (transformando palavras em imagens, imagens em palavras), que conseguimos criar novos mundos, novas linguagens, renovamos a (nossa) vida, tal como ocorre com a Natureza. Queria ele, que víssemos também com os olhos da nossa alma, usando criativamente a linguagem de modo que possamos tanto reciclá-la num eterno retorno do efêmero, quanto torná-la vazia para partirmos novamente do zero.
Quanto à Consistência que ele não teve tempo de elaborar, seria, segundo alguns estudiosos, o que tornaria para nós visível e exata uma sensação de Totalidade, de conjunto para tudo aquilo que, no mundo escrito e também no mundo não escrito, parece escapar de nós em sua Leveza, Rapidez e Multiplicidade.
A publicação de “Outros tantos” do escritor Flávio Ulhoa Coelho, reúne 32 contos (alguns com estrutura de crônica), agrupados em 6 partes sob os títulos que foram tão caros à Italo Calvino: Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade, Multiplicidade e Consistência. E o que o leitor encontra é em evidente exemplo de criatividade. Parece-nos que tal divisão é meramente esquemática, intuitiva, sem ligações rígidas com o pensamento de Calvino, diríamos mesmo que constituem um flexível exercício em torno daquelas ideias do escritor italiano, que são atualizadas e, em certo sentido, aprofundadas.
Em alguns textos observamos a nítida opção pelo fragmentário de vidas ou situações que se entrelaçam, em circunstâncias existenciais complexas de que o olhar eventual de um observador não daria conta. O olhar do ficcionista recolhe “traços” e apresenta reflexões que não possuem a intenção de organizar, mostrando que a composição do real se revela no fragmento. Ver: “E nós quem somos?”, “negro y blano”, e “A árvore darwiniana”. Há contos onde a imaginação atua como alavanca de procedimentos lógicos. E entra em cena uma dialética entre imaginação e realidade, com resultados realmente surpreendentes como acontece no excepcional, ”Ela, a ideia”, uma verdadeira aula de como o escritor lida com sua imaginação criadora.
Há ainda no autor dessa obra, uma faceta muito interessante. A partir de um enredo básico de um conto, ele escreve outro com uma abertura para: “e se fosse diferente o curso daquela história?”. A possibilidade vem em outro texto, e de uma forma muito sutil, não diretamente implícita, um mero detalhe muda a trajetória de vidas. Os exemplos mais evidentes são “Olhares flutuantes” e “Olhares futurantes” de um lado, e mantendo essa característica de variação de desfecho, mas aprofundando sentidos, temos “Os momentos mais eternos” e “Conto de natal”. Como são textos muito bem trabalhados no nível da construção ficcional, perduram na memória do leitor e, quando este lê o outro texto, percebe claramente que emergem detalhes e circunstancias já ventiladas, mas com uma iluminação mais intensa. Habilidade típica do contista que domina plenamente a sua ficção em toda e qualquer direção que entenda dar-lhe.
Em outras narrativas encontramos profundas reflexões sobre a monstruosa realidade social brasileira como acontece em “O carregador de dedos” e “Um par de tiros”. Profundas reflexões porque, mais importante do que a mera reprodução de situações, o autor põe o dedo na ferida exposta. Na ferida aberta da corrupção sistêmica que assola o país, que muitos adotam e até defendem, como lemos no primeiro conto, ou o porque de nossa juventude negra e pobre (via de regra), estar sendo sistematicamente exterminada por aqueles que representam o Estado, ou deveriam representar. E não somente a triste realidade atual, o autor visita o tempo um pouco mais recuado. Veja-se o conto “A rua”, pungente relato sobre a vida de uma mulher corajosa e engajada politicamente, que é assassinada durante o escrotíssimo (desculpem mas não encontro outra palavra), regime de exceção que tivemos no Brasil durante vinte e tantos anos, e que todo mundo sabe muito bem qual foi. Contos assim, nos levam a reconhecer, com pesar, com muita dor, que o Estado brasileiro foi mesmo forjado na violência e na exclusão, e continua desgraçadamente nesse triste percurso.
Não poderíamos deixar de mencionar finalmente, o doce lirismo que exala em textos como “Bonde 53”, “mãos dadas no parque”, “guardanapo”, “achados e perdidos”, “morto no corpo” e “por ora”. Esses textos, todos, com suas características e circunstancias peculiares claro, nos fazem lembrar das coisas boas da vida, sim, por incrível que possa parecer, a vida os tem. E então somos capturados inapelavelmente por sensações e sentimentos bons quando lemos textos que excitam a memória de tempos idos, ou a maravilha que é estar apaixonado, ou ainda a delícia e a dor da entrega impensada. Quem não lembra dos vestígios daquele amor que poderia ter sido e não foi? Que bem nos faz constatar a transitoriedade de nossas dores de amor que refluem com o tempo para o mais completo esquecimento? Que dizer então, da doçura que é sentir-se amado?
E, paralelamente ao que já referimos e, dentro da diversidade dos temas e formas trabalhados, que dão um sabor todo especial ao livro, salta aos olhos a elegância e a qualidade literária da prosa. Sem sombra de dúvida podemos afirmar que “Outros tantos” do escritor e professor Flávio Ulhoa Coelho consegue abrir espaços de interrogação, de meditação e de exame crítico Em suma, enseja a proveitosa relação com nós mesmos, com o nosso mundo interior através do mundo que o livro nos abre.

Livro: “Outros tantos” – Contos de Flávio Ulhoa Coelho – Editora Penalux,
Guaratinguetá - São Paulo - SP, 2019, 198p.

ISBN 978-85-5833-531-7


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