Em vésperas do lançamento oficial do novo livro de Flávio Ulhoa Coelho, deixamos aqui o parecer de Krishnamurti Góes dos Anjos sobre OUTROS TANTOS
Belo exemplo de criatividade e sensibilidade em
“Outros tantos” de Flávio Ulhoa Coelho
Por Krishnamurti Góes dos Anjos
Por Krishnamurti Góes dos Anjos
Encontrar um diálogo oportuno e frutífero com o pensamento de grandes
escritores do passado no que vem sendo publicado atualmente na Literatura é um
achado gratificante. Sobretudo, quando boas ideias são redimensionadas sob um
viés de criatividade e competência intelectual. Lembremos de um passado
relativamente recente.
No ano letivo de 1985-86, o escritor italiano Ítalo Calvino (1923 - 1985)
iria proferir palestras na universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Ele
definiu como tema os valores literários que mereciam ser preservados no curso
do próximo milênio; imaginou seis conferências e escreveu cinco. A morte
prematura o impediu de concluir o seu trabalho, “Seis propostas para o próximo
milênio.” Propostas que, segundo ele, seriam úteis para renovar a linguagem
escrita contra “a peste da linguagem” e “o dilúvio das imagens pré-fabricadas”,
males que estariam assolando a Modernidade. Tal peste se manifestaria como a
perda de força cognitiva num automatismo que tende a nivelar a expressão sobre
as fórmulas mais genéricas, anônimas, abstratas, a diluir os significados, a
cegar as pontas expressivas, a apagar qualquer centelha que jorre do encontro
das palavras com novas circunstâncias. Calvino estabeleceu afinal, Proposições
a que deu os nomes de Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade, Multiplicidade e
Consistência, esta última perdurando inconclusa. Propostas estéticas, que se
imporiam como armas de resistência, meios de intervenção e de atuação do
escritor em relação ao mundo.
Calvino entendia a Leveza (no sentido de retirar o peso das coisas),
apontando para o peso existente no mundo, um peso que deve ser filtrado,
amenizado pela operação literária. A partir da consciência da existência do
peso que podemos e devemos buscar a Leveza. Tornadas leves, as coisas e os
seres adquirem velocidade, escapando de qualquer controle. Por isso, não é à
toa que Calvino escolhe a Rapidez como proposta que se seguirá imediatamente à
da Leveza. Sem jamais perder de foco o mundo não escrito, Calvino contrapõe a
Rapidez que ele propõe para a Literatura, à velocidade que percebe nos meios de
comunicação. Por isso, também no início da sua segunda conferência, ele
adiantou que “o valor que quero recomendar é justamente este: em uma época em
que outras media velocíssimas e de extensíssimo raio triunfam, e arriscam
achatar qualquer comunicação em uma crosta uniforme e homogênea, a função da
literatura é a comunicação entre aquilo que é diferente em tudo quanto é
diferente, não camuflando, mas exaltando a diferença, segundo a vocação própria
da linguagem escrita”. Vemos assim a Rapidez como instrumento de comunicação
direta, para fazer contato com Tudo. Acrescentemos que a Rapidez também nos
serve para que possamos ver e captar as coisas sem que elas passem pelo
controle, pela análise do consciente, como se ao mesmo tempo as
surpreendêssemos e fôssemos surpreendidos por elas.
Já a definição de Exatidão, se baseia em três pontos, a saber, 1) o desenho
da obra bem definido e bem calculado; 2) a evocação de imagens visuais nítidas,
incisivas, memoráveis, e 3) uma linguagem a mais precisa possível como léxico e
como demonstração das nuances do pensamento e da imaginação. A comunicação
exata entre as coisas. O uso exato e justo da palavra, “associa o rastro
visível à coisa invisível, à coisa ausente, à coisa desejada ou temida, como
uma frágil ponte de fortuna lançada sobre o vazio. Já em sua proposta da
Visibilidade, Calvino chama a atenção para o fato de que é por meio da
capacidade de imaginar (transformando palavras em imagens, imagens em
palavras), que conseguimos criar novos mundos, novas linguagens, renovamos a
(nossa) vida, tal como ocorre com a Natureza. Queria ele, que víssemos também
com os olhos da nossa alma, usando criativamente a linguagem de modo que
possamos tanto reciclá-la num eterno retorno do efêmero, quanto torná-la vazia
para partirmos novamente do zero.
Quanto à Consistência que ele não teve tempo de elaborar, seria, segundo
alguns estudiosos, o que tornaria para nós visível e exata uma sensação de
Totalidade, de conjunto para tudo aquilo que, no mundo escrito e também no
mundo não escrito, parece escapar de nós em sua Leveza, Rapidez e Multiplicidade.
A publicação de “Outros tantos” do escritor Flávio Ulhoa Coelho, reúne 32
contos (alguns com estrutura de crônica), agrupados em 6 partes sob os títulos
que foram tão caros à Italo Calvino: Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade,
Multiplicidade e Consistência. E o que o leitor encontra é em evidente exemplo
de criatividade. Parece-nos que tal divisão é meramente esquemática, intuitiva,
sem ligações rígidas com o pensamento de Calvino, diríamos mesmo que constituem
um flexível exercício em torno daquelas ideias do escritor italiano, que são
atualizadas e, em certo sentido, aprofundadas.
Em alguns textos observamos a nítida opção pelo fragmentário de vidas ou
situações que se entrelaçam, em circunstâncias existenciais complexas de que o
olhar eventual de um observador não daria conta. O olhar do ficcionista recolhe
“traços” e apresenta reflexões que não possuem a intenção de organizar,
mostrando que a composição do real se revela no fragmento. Ver: “E nós quem
somos?”, “negro y blano”, e “A árvore darwiniana”. Há contos onde a imaginação
atua como alavanca de procedimentos lógicos. E entra em cena uma dialética
entre imaginação e realidade, com resultados realmente surpreendentes como
acontece no excepcional, ”Ela, a ideia”, uma verdadeira aula de como o escritor
lida com sua imaginação criadora.
Há ainda no autor dessa obra, uma faceta muito interessante. A partir de um
enredo básico de um conto, ele escreve outro com uma abertura para: “e se fosse
diferente o curso daquela história?”. A possibilidade vem em outro texto, e de
uma forma muito sutil, não diretamente implícita, um mero detalhe muda a
trajetória de vidas. Os exemplos mais evidentes são “Olhares flutuantes” e
“Olhares futurantes” de um lado, e mantendo essa característica de variação de
desfecho, mas aprofundando sentidos, temos “Os momentos mais eternos” e “Conto
de natal”. Como são textos muito bem trabalhados no nível da construção
ficcional, perduram na memória do leitor e, quando este lê o outro texto,
percebe claramente que emergem detalhes e circunstancias já ventiladas, mas com
uma iluminação mais intensa. Habilidade típica do contista que domina
plenamente a sua ficção em toda e qualquer direção que entenda dar-lhe.
Em outras narrativas encontramos profundas reflexões sobre a monstruosa
realidade social brasileira como acontece em “O carregador de dedos” e “Um par
de tiros”. Profundas reflexões porque, mais importante do que a mera reprodução
de situações, o autor põe o dedo na ferida exposta. Na ferida aberta da
corrupção sistêmica que assola o país, que muitos adotam e até defendem, como
lemos no primeiro conto, ou o porque de nossa juventude negra e pobre (via de
regra), estar sendo sistematicamente exterminada por aqueles que representam o
Estado, ou deveriam representar. E não somente a triste realidade atual, o
autor visita o tempo um pouco mais recuado. Veja-se o conto “A rua”, pungente
relato sobre a vida de uma mulher corajosa e engajada politicamente, que é
assassinada durante o escrotíssimo (desculpem mas não encontro outra palavra),
regime de exceção que tivemos no Brasil durante vinte e tantos anos, e que todo
mundo sabe muito bem qual foi. Contos assim, nos levam a reconhecer, com pesar,
com muita dor, que o Estado brasileiro foi mesmo forjado na violência e na
exclusão, e continua desgraçadamente nesse triste percurso.
Não poderíamos deixar de mencionar finalmente, o doce lirismo que exala em
textos como “Bonde 53”, “mãos dadas no parque”, “guardanapo”, “achados e
perdidos”, “morto no corpo” e “por ora”. Esses textos, todos, com suas
características e circunstancias peculiares claro, nos fazem lembrar das coisas
boas da vida, sim, por incrível que possa parecer, a vida os tem. E então somos
capturados inapelavelmente por sensações e sentimentos bons quando lemos textos
que excitam a memória de tempos idos, ou a maravilha que é estar apaixonado, ou
ainda a delícia e a dor da entrega impensada. Quem não lembra dos vestígios
daquele amor que poderia ter sido e não foi? Que bem nos faz constatar a
transitoriedade de nossas dores de amor que refluem com o tempo para o mais
completo esquecimento? Que dizer então, da doçura que é sentir-se amado?
E, paralelamente ao que já referimos e, dentro da diversidade dos temas e
formas trabalhados, que dão um sabor todo especial ao livro, salta aos olhos a
elegância e a qualidade literária da prosa. Sem sombra de dúvida podemos
afirmar que “Outros tantos” do escritor e professor Flávio Ulhoa Coelho
consegue abrir espaços de interrogação, de meditação e de exame crítico Em
suma, enseja a proveitosa relação com nós mesmos, com o nosso mundo interior
através do mundo que o livro nos abre.
Livro: “Outros tantos” – Contos de Flávio Ulhoa Coelho – Editora Penalux,
Guaratinguetá - São Paulo - SP, 2019, 198p.
ISBN 978-85-5833-531-7
Sem comentários:
Enviar um comentário
Toca a falar disso