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Força!
Isabel a sentiu, pressionando o ventre assim que entrou na recepção do hospital de subúrbio. Uma força que mais parecia uma espiral que a levava para baixo. Uma cólica mal disfarçada nas entranhas, uma cabecinha coroando a abertura que cedia à passagem enquanto ela, debilitada da fragilidade do ato, se aconchegava ao chão sujo dos cheiros do mundo. Logo viu que não era a única a sofrer por dentro. A criança custava a nascer, como se já tivesse feito muito, como se não quisesse ocupar espaço, tímida para enfrentar o mundo que ia se abrir. Nasceu afinal, sem gemer ou chorar, como se já tivesse feito muito na vida. Soltou-se de Isabel numa poça de sangue e fezes que lhe desceu pela perna, na urgência em se desfazer. A mãe a acolheu ao colo. Vai se chamar Maria, disse sentada em cima da placenta. Ninguém chegou perto delas, unas na humilhação daquele chão imundo de desatenções. Médico de plantão, não havia. Nem enfermagem, apenas recepcionista e maqueiro. A falta de salário atrasava o respeito e a compaixão por aquela parte do mundo desprovida de vantagens. Isabel, com a dor empoçada nos olhos, se desesperou com a falta de choro da criança.
Força.
Isabel pediu à filha. Acolheu-a ao colo, a criança ainda envolta em secreções e uma aura de pureza, mesma na impureza do lugar. Segura ela assim, voltada para baixo e faz massagens nas costas, alguém sugeriu. Isabel ganhou conselho, enquanto a pequena Maria ia ganhando coragem, saindo das profundezas de fendas, saindo das profundezas abissais desprovidas de expressões de espanto. A pequena Maria, ainda estrangeira àquela linguagem de carências que a condenava à submissão antes mesmo de nascer, expunha a irrealidade que a rodeava, expunha as faltas dos plantões e a sequência de um triste espetáculo. Alguém resolveu filmar, registar o momento da desumanização do parto normal, como se o registro pudesse desfazer o ocorrido e a sensação de que o coração se partia em mil pedaços sem qualquer anestesia. Chora, Maria. Pode chorar, eu estou aqui com você. Eu sou sua mãe, não vou sair de perto de você. Não vou te abandonar. Chora, filha. Isabel quase implorou, a criança com a boca aberta, sem compreender que saía do meio do sangue e da merda para irromper no mundo em ato de resistência, que ia ter peito, que ia sugar o que lhe viesse à boca, que ia se esgarçar até o último fio de voz para se tornar humana.
EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - ANTOLOGIA - IN-FINITA
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