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Fui logo cimentando os degraus da escada, tarefa que me deram desde menina nova. Parei no desmazelo do cansaço e sentei lá no alto, que ainda era baixo. Lembrei. Começou desde o dia que me consultaram o realejo. Eu era pequena demais para contestar, e a música melancólica do velho triste me hipnotizou assim, de repente. O bichinho saiu, arqueou o corpo esguio cheio de pena (que tipo de pena?) e trouxe o papel amarelado, dobrado, ressentido. Era o certificado oficial pra dar continuidade a ela, a existência. Eu, ali, esperando alcançar um lugar que nem sabia o que era considerando que existisse. Aonde chegaria? Lá longe. Levanta e põe esse degrau mais para o alto, menina, e mira ali, por obséquio, em lugar nenhum! Mais pra direita, mais pra esquerda. Aí está bom.
Mas eu queria mesmo era saber se esse lugar, se eu tinha que construí-lo ou se já vinha pronto e era só arrombar a porta. A imagem do realejo se desfez e se misturou à música infantil do mesmo tempo e espaço: a vida era isso, “era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada”. Não tinha nem porta pra arrombar. Era o alto, sim, e era a casa que eu tinha que dar um jeito de chegar. Só que os caminhos, ninguém me falou qual pegar. O caminho pra se chegar era a mesma trágica Rua dos Bobos, bem na entrada do número zero.
Aqui está, disse o velho triste, entregando a sorte ressentida escolhida a bico pelo periquito magro e cheio de dor. O animal, debaixo de toda a pena que o recobria, sabia que deveria escolher o papel certo ou o destino da pessoa não se cumpriria. O peso de sua responsabilidade era tamanho que o bicho se arqueara com o passar do tempo, pois vivia seus dias repleto de angústia. Cheio de pena. Peguei o papel e o abri com a mesma coragem ingênua de uma criança que abre a porta de casa sem autorização, sem saber quem ou o que esperar. A vida vinha sem olho mágico.
Eu via todos os degraus que havia construído e praguejava contra o realejo. Maldito velho! Ensinou-me a dançar sua música, a abrir o bico quando necessário, e, sobretudo, a carregar na minha alma penada a esperança de que um dia a jaula se abriria. Era a ilusão da liberdade assentada com cimento e disfarçada de melodia infantil. Nada de novo para quem tem asas, mas não aprendeu a voar.
Eis que sem me dar conta do motivo, sentia a dor que já não era minha. O velho sorria com maldade enquanto o bicho se encolhia no canto da jaula, como se fosse culpado por toda a trama de acontecimentos que resultaram no exato momento da queda. Além da dor do corpo havia a dor da alma, e além da revolta, havia a dúvida.
Olhei ao redor e constatei assustada que o que eu mais temia havia acontecido: eu deixava de ser o que era. Bem ali, no começo do trabalho de uma existência inteira, traduzido por uma escada infame e sem a utilidade de outrora, estava minha triste figura, coberta de pena. Pena, penas grandes, verdes e lustrosas que se espalhavam por toda a extensão de meu corpo, recobrindo todas as partes que meus olhos incrédulos eram capazes de alcançar. Eram tão grandes e petulantes, que mal me deixavam enxergar. Foi então que a plumagem carnavalesca abria alas a repentina e sombria constatação: minha existência enquanto construtora da própria, havia acabado.
Mova-se, ordenou o velho. Eu já não precisava mais da escada, muito menos dos degraus que eu havia construído.
EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - ANTOLOGIA - IN-FINITA
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