quarta-feira, 8 de maio de 2019

O INUSITADO E INSÓLITO VESTIDO DE NOIVA DA DUQUE (excerto) - NEUSA DEMARTINI

O inusitado e insólito noiva da Duque
Bembão entra e sai dos conteiners de lixo como quem entra na cozinha e depois no quarto, passando pelo banheiro. Às vezes some, e ninguém sabe ninguém viu. Nem ele mesmo se sabe ou se viu. Não tem nome nem identidade e, também, ninguém por ele. Não fala, não socializa, não pede e não dá um bom dia, quanto mais uma boa noite! Apenas se diz Bembão, pra si mesmo. Um bem bão bem alegre, como um contentamento infantil diante de um saco de pipoca com chocolate doce.
Este ser come restos de frutas da fruteira da esquina, sobras de comida da lanchonete do meio da quadra, e recolhe as cartas comerciais, que os Correios e Telégrafos, estabelecido ali em frente, jogam no lixo quando passa do tempo dos destinatários virem pegar.
Encosta-as pertinho dos olhos, uma a uma e as empilha por tamanho, em um trabalho de paciência que lhe consome quase toda a tarde. Depois as leva para outro contêiner e ali as deposita, uma a uma também, como se estivesse distribuindo-as nos escaninhos de outros tantos moradores. Seus sons vocais são apenas dois: Bem Bão! Bem Bão! Enquanto come o que juntou, e um ziziziziziziziziziziziziziziziziziziziziziziziz interminável, que emite quando não está no primeiro som. Monocórdica, repetitiva ad infinito, um instrumento primitivo que precisa ouvir para se dar conta que é um ser vivo, um homem, que um dia foi um recém- nascido, um bebê, uma criança que mamou, engatinhou, comeu papinha e fez xixi e cocô no penico. Quando se perdeu na sua história? Ninguém que a acompanhou, sequer um dia, passou por ali para vê-lo.
Entra e sai do contêiner com uma destreza de dar inveja a cachorro magro ou gato esfomeado. Acompanhado da cantoria, como se fosse uma cigarra anunciando o verão, faz o seu próprio ritmo, intercalado pelo “bem bão”, “zizizizi”, “bem bão”, “zizizizi”... Como uma canção de ninar para si mesmo, para acalmá-lo e recordar-lhe, quem sabe, o aconchego de um colo de mãe.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - ANTOLOGIA - IN-FINITA

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