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Eu não quero só a flauta. Eu quero a música que mora dentro da flauta. Cada nota escondida em sustenidos sentidos. Eu quero os acordes da poesia virando canção - e a voz que a faz palavra entoada. Sim, sou egoísta por querer a flauta e a moradora da flauta.
Eu também quero a vida que atravessa a palavra. Sorver até a última gota esse silêncio que sufoca a garganta e impede a voz de ser o órgão febril da palavra. Eu não quero apenas a mão que ergue a caneta e escreve a palavra. Eu quero a alma que percorre a mão, eu quero o gesto, o verbo, a liberdade voando solta nas asas da palavra - tão fugidia. Esguia. Esgueirando-se sorrateira no teu olhar de mistérios. Sorrisos soltos em silêncios tão sérios.
Eu não quero apenas a roupa da carne. Eu quero o corpo, o osso, a veia repleta de vivo vermelho, a seiva que alimenta o peito e lateja o doce e o amargo. Eu quero conhecer tua ferida. O corte da pele, o sangue jorrando em gotas, o choro do ventre, a semente parindo o futuro do indicativo. Eu quero a ruga, a curva, o passo apressado, o olhar tão cansado, a ira impulsiva, a angústia desmedida, a saudade guardada na vértebra esquerda de desesperos entorpecidos. Eu quero o riso, a gargalhada, a alegria, o sonho louco na medida exata. Ou perdida.
Eu não quero apenas a solidão da palavra. Nem somente a flauta. Eu quero a curva do rio escorrendo enchentes em desejos tão urgentes. E a paciência do tempo favorecendo o despertar da semente. Eu quero o amor que mora na semente - da flauta.
Sim, sou egoísta por querer o órgão febril do coração da flauta. Eu quero o outro lado da rua. Esse lado da lua. O meio da rua. A avenida. Estrada de terra batida. A ponta da estrela iluminando o caminho. Os passos tão gastos em perfurados sapatos.
Esta é minha pauta - a música da (tua) vida. No toque sutil (ou áspero) da flauta.
EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - ANTOLOGIA - IN-FINITA
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