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– Como escrevo linguiça?
Ela perguntou ao colega ao lado. Ele riu e em silêncio ficou. A menina insistiu, talvez, porque em sua redação, já longa, precisasse saber como escreveria linguiça. Queria era saber se a tal palavra levava trema ou não. Sem resposta apagou o que fizera.Comeu um pouco da ponta do lápis (sempre fazia isto quando se dava por ansiosa). Mais alguns minutos e foi novamente perguntar.
– Como escrevo linguiça?
Agora, com menos força e mais arrastada na fala. A outra colega ria de tremer-se toda pelo riso frouxo. Era caso de indignar-se com tão pouco caso dos colegas. Mas sem coragem de perguntar à professora, demorava-se em alguns minutos pensando em como, então, substituir a palavra – recurso que utilizava na esperança de livrar-se das situações difíceis que a língua lhe botava algumas manhãs. Foi com certo receio que trocou todo o contexto de sua composição, passando a falar de porcos. Lembrava-se, vez por outra, da fazenda do avô e de como as carnes de sobra dos porcos também serviam para fazer as linguiças e desatou a comentar a importância dos porcos, em vez de falar de como gostava de linguiça.
Anos mais tarde, adulta, crescida e parida pelas experiências da vida, encontrou aquela singela e ingênua redação entre os papéis colados numa das pastas de recordações que guardara. Deu-se a rir sozinha no canto do escritório. Percebeu o quanto a menina envergonhada da sala de aula, a do passado, tinha desenvolvido um senso crítico capaz de exigir um preparo maior e zeloso no so da língua. A escritora de hoje, profissional e disciplinada, sentira o vácuo que aquela experiência tinha lhe proporcionado.Era como se as palavras quisessem voar com seus sons e sinais próprios, desses que logo são reconhecidos, mesmo quando não as conhecemos.
Escrever para ela, agora mulher, tinha o ritmo do dia da fazenda do avô: cedinho a ordenha, a tirada do leite fresquinho; depois, a contagem do gado; a lavagem pros porcos; a coleta dos ovos; o plantio de mais uma nova muda; e assim seguiam os dias e as tardes, que incluíam a montaria no alazão preferido do avô. Havia muita disciplina, mas entusiasmo suficiente para dar continuidade às tarefas por parte daquele homem de calças largas e galochas com boné ao contrário, sempre parecido com um garoto. Seus romances eram, cada um a seu estilo, uma grande fazenda a ser cultivada e amorosamente preservada, embora as tempestades ocasionais desforrassem o celeiro, deixando-o sem telhado. E lá ia seu avô mais um dia refazer o serviço de obra com os poucos empregados como toda construção acolhedora necessita. Assim, olhava para seus textos, celeiro de ideias, que em algumas tempestades mentais e momentos de insegurança, tomavam seu tempo, exigindo-lhe novo labor.
A memória dos dias escolares trazidos por aquelas folhas, agora, sem muita importância, chegaram acompanhados da potência do passado em boa medida feliz que vivera ao lado do avô. Pai e mãe viajantes, distantes quase sempre. Irmãos mais velhos em outros países, sobrara a ela uma cidadezinha do interior rural ao lado do sempre bem disposto avô. Ele se fora fazia dez anos e com ele levou toda a vontade de ficar na fazenda. Nunca mais revisitara a propriedade. Nunca mais montara no corcel chocolate que lhe era dócil nas tardes de montaria. Nunca mais. Então, compreendeu que escrever poderia acompanhá-la novamente da terra distante no tempo e de todas as lembranças ainda vivas dentro de si.
EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - ANTOLOGIA - IN-FINITA
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