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Não sei o que se passa com os espelhos desta casa. Nunca me devolvem a mesma imagem. Às vezes descubro o rosto de uma mulher jovem, muito mais jovem do que eu. É bonita e sorri-me. O sorriso dela tem a limpidez da primeira luz da manhã. O corpo também é jovem e tem a mesma frescura que descobrimos no ventre da fruta madura. Gosto de olhá-lo e de namorar com ele. Namorar apenas com o olhar. Habitá-lo como se fosse a minha casa. Fingir que não é meu, e que não sou eu que o olho, mas o olhar do desejo. Desejar exige distância e alguma imaginação. De outras vezes, é uma mulher velha que me olha. Cabelos grisalhos, rugas ao canto dos olhos e costas cansadas. Adivinho-lhe o olhar tingido de um cinzento matizado onde se entrelaçam dores muito antigas. Vêm-me à memória os novelos de linha matizada com que a minha avó crochetava naperons de renda para a mesa da cozinha e para o cesto do pão. Dura apenas breves instantes, este relâmpago. A mulher velha não sorri, apenas me fita; os seus olhos, porém, não se detêm em mim, atravessam-me como uma seta, evitam os meus como se tivessem medo. Ou talvez o medo seja meu. De me tornar velha como ela. Rugas, achaques, doenças? Envelhecer é voltar à infância, sem os privilégios da infância. O corpo deixa de ser nosso, assim como os dias, a vontade, os movimentos. Perdemos autonomia. Voltamos a precisar que cuidem de nós. E esse gesto, o de nos colocarmos nas mãos de outra pessoa e ficarmos inteiramente à sua mercê, é o que verdadeiramente nos tira o sono. De outras vezes, ainda, encontro na superfície do espelho a face rechonchuda de uma mulher gorda. As carnes da mulher gorda avolumam-se nos meus olhos. Tem um sorriso patético e triste. Parece ainda escutar a voz distante da mãe: Ao que te deixaste chegar! A voz da mãe, num misto de compaixão e repugnância. Mas a verdade é que também a ela a gordura do seu corpo a embaraça. Há gente para quem olhar uma mulher gorda é o mesmo do que ser insultada por ela. Essas pessoas, se tivessem poder para isso, inventariam uma lei que proibisse os gordos de saírem à rua. Naturalmente, construiriam lares e casas de acolhimento onde estes se pudessem albergar longe dos olhos do mundo. Tudo com as máximas condições de higiene e comodidade, evidentemente. Coitados, no fundo são doentes, pensam, num misto de piedade e alívio por não ser contagiosa, esta doença. Nesta altura a mulher do outro lado do espelho despe o sorriso e a melancolia juntamente com a roupa e devolve-me a sua nudez, sem pudor. Olho o seu corpo, incrédula, onde descubro a languidez das formas de uma mulher madura. Uma mulher da minha idade. Sorrio e namoro-me, piscando o olho ao espelho, que novamente se diverte a iludir-me a percepção. Os meus olhos deixam de ser meus. Na-morar é uma outra forma de morar. Morar dentro, e fora de nós. Dentro, e fora do outro. Porque só quando amamos percebemos que dentro e fora se confundem.
EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - ANTOLOGIA - IN-FINITA
Que bonito texto! Parabéns!
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