Escrever um livro memorialista exige
diversos sacrifícios, um deles é ausentar-se, tomar distanciamento para trazer
não pessoas, fantasmas, mas personagens. Reminiscências podem ser fonte sim de
permanência, mas também de impermanência. Então resolvi largar mão das minhas,
deitar fora. Disléxica, tenho dificuldades com a linearidade, penso por imagens
e cometo erros grosseiros. Venho com uma lupa velha e acendo alguns pontos,
outros não. O livro quase pronto na base fragmentária.
Memórias feitas pra mudar, nunca para ficar. Um dos trechos ou contos,
estilhaços, o que seja.
"Lord"
Lord era nome do cachorro do meu avô, um collie, que eu
conheci na sessão da tarde como Lassie. Minha mãe adolescente implicava com
ele. Talvez tivesse ciúmes do cachorro, nunca saberei ao certo. Mas a história
que ouvi de familiares era que ela realmente o detestava e detestava o modo
carinhoso com o qual meu avô tratava o cão. Um dia ela o provocou até o
desatino. Cachorros domésticos desatinam. E ele a mordeu quatorze vezes pelo
corpo inteiro. Meu avô ao se deparar com a cena, minha mãe toda ensanguentada,
pegou a espingarda e matou Lord. A espingarda eu conheci. Ficava pendurada na
sala. Naquele dia ele a tirou de qualquer possibilidade de uso. Qualquer. A
arma, a violência e o sangue entraram assim pela porta da frente da minha
memória. Qualquer também.
Eu sou uma mulher do meu tempo e trago uma faca
pontiaguda pendurada no peito. O meu tempo faz parte da decadência humana,
porosa. Por isso entender minha mãe era entender o Brasil. A hippie louca que
casa com o militar de baixa batente e se torna ela o superior imediato. Não
estamos acostumados com a democracia. Somos filhos da escravidão e das ditaduras
civis, jurídicas e militares. Minha mãe me abandonou para viver a vida com
liberdade, mas nunca experimentou o que era ser livre longe de qualquer pequeno
poder. Nunca foi realmente livre. Eu entendo que a democracia seja o demo,
assustadora nos seus princípios clássicos de direitos. Assustadora em permitir
nuances. Aceitar diferenças é democrático porque permite. A liberdade não pede
permissão para ser e é agnóstica. É permitido ser sem ter que pedir a sua
permissão, você sabia? Isto diz respeito a tudo e todos. Não adianta mudar uma
palavra pensando ter mudado uma gramática. E como mudar uma gramática se fomos
formados em seu falo? Minha vida se confunde então com a minha pátria fálica.
Sempre achei uma coincidência ter um nome tão apropriado. Patricia Porto. Pátria e Porto. Destino e chegada. Destino e saída. Não era
uma coincidência saudosista. Era uma profecia de cair no mundo, pária. Um
glossário e ao mesmo tempo um bestiário entre escolher ser eu ou todas as
outras.
mini-Biografia: Patricia
Porto
Graduada em Literaturas Brasileira e Portuguesa, Doutora em
Políticas Públicas e Educação, professora e poeta, publicou a obra acadêmica
"Narrativas Memorialísticas: Por uma Arte Docente na Escolarização da
Literatura” e os livros de poesia "Sobre Pétalas e Preces" e
"Diário de Viagem para Espantalhos e Andarilhos". Participou, ainda,
de coletâneas no Brasil e no exterior, integra o coletivo Mulherio das Letras e
é colaboradora do portal da ANF (Agência de Notícias das Favelas).
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