Os diálogos de M. P. Bonde em A descrição das
sombras
Minhas palavras são a metade de um diálogo obscuro
Captada palavra a palavra, a poesia apresentada por
M. P. Bonde no seu novo livro é muito acessível, afinal, sente-se que o poeta escreveu
este A descrição das sombras de forma mais espontânea
possível, respeitando a simplicidade que lhe caracteriza, em termos de
imaginação e, sobretudo, da tradução desse exercício. Por isso, temos nesta
proposta literária do autor, mais uma vez, uma escrita não apenas sedutora, mas
igualmente inquietante por bem conseguir nos retirar do nosso ambiente de
conforto. Assim, as vozes dos sujeitos de enunciação, agradáveis de ouvir em
surdina, levam-nos a caminhar sem barreira em direcção a um encontro com o
infinito, que nós sabemos que não vai acontecer, no entanto, entregamo-nos a
essa odisseia como se partir na boleia da palavra constituísse um recomeço de
alguma coisa diluída entre o complexo e o inexplicável.
De facto, com 41 poemas divididos em quatro
partes, A descrição das sombras consegue fazer o que é
obrigatório numa obra bem concebida: desligar-nos do que eventualmente julgamos
ser bom no plano real para, em compensação, mergulharmos numa outra atmosfera
bem desenvolvida do ponto de vista sensorial. Porque é isso o que acontece.
Nesta obra de Bonde há muito resultado da percepção, quer dizer, da percepção
conectada com a sensação. E tudo isto conflui numa série de diálogos, às vezes
sem respostas – é o caso dos dois primeiros poemas “Amor futuro” e “Guilhotina”
–, que tanto funcionam como tentativas de chamar um interlocutor distante à
razão ou para lembrar que “não há atalhos para a dor” (“Sabor do álcool”).
Usando a cavaqueira com as entidades que lhe
habitam, muitas vezes M. P. Bonde coloca-nos numa condição feita de subtileza,
na qual somos convidados a mantermo-nos focados em determinados aspectos que,
diariamente, vão deixando de merecer importância. Aí torna-se comum encontrar
na apreciação que as entidades textuais fazem aos frutos, às flores, às
plantas, à água ou ao corpo feminino – com poemas a insinuar um erotismo
distante, por exemplo, “Desejo” e “Suspiro” – mil pretextos para dar vigor às
palavras, o que acontece graças à capacidade do poeta, por via dos seus
sujeitos, ouvir-se a si próprio. No poema “Mafurreira” temos um exemplo desta
abertura ao universo interior: “Abro os meus ouvidos aos sons da alma, as
pulsações do corpo tricotam a melodia ardente da flauta enquanto o sopro das
folhas desterra a pauta do tripé” (p. 36).
Dando azo para os sujeitos exprimirem desejos
sensuais, igualmente, Bonde valoriza a manifestação de outros de dimensão
onírica. Por exemplo, no poema “Alma” – o que antecede a pior parte do livro
(3ª parte), breve, efémera e pouco envolvente. Naquele poema, pode se escutar:
“Queria ser uma onda, beijar a terra seca, vaguear pelas profundezas dos
oceanos e expulsar as emoções que obstruem a razão” (p. 37).
Além de que escrever um livro a ser partilhado com
os seus leitores, pode ser que M. P. Bonde, neste A descrição das
sombras, lançado alguns meses depois do seu livro de estreia “Ensaios
poéticos”, estivesse a iluminar as feições dos seus sujeitos mais
desconhecidos, inclusive por si, assumindo o que nós consideramos diálogo como
um motor de busca do que cada ser seu tem a dizer. Afinal, como poderia dizer
Cecília Meireles, as palavras de M. P. Bonde, nesta obra, são a metade de um
diálogo obscuro, que vão continuar, quem sabe?,
em cada livro ainda por publicar, com a ressonância do que o poeta
capta, sente e pretende exprimir ao mundo.
Por José dos Remédios
Fonte neste link
Título: A descrição das sombras
Autor: M. P. Bonde´
Editora: Fundação Fernando Leite Couto
Visite a página do autor neste link
Sem comentários:
Enviar um comentário
Toca a falar disso