EPOPÉIA
VERDE E AMARELADA de um singelo homem-eterno-menino.
Quando
a gente nasce, se depara com o mundo nos sorrindo, acha tudo lindo, um amor
in-findo se aprochega do nosso âmago, lindas pessoas, tão amorosas a nos
ensinar a arte da prosa; depois é flor, depois é rosa e margarida, depois é
céu, é nuvem é vida, depois é alegria de ser carregado no colo, depois é
beijos, depois abraço, depois nosso sentimento é envolvido num doce laço de
fita e é presente é aniversário, e é escola é bê-a-bá, é São João e é Carnaval
e é Natal e é alegria e é fantasia e é religião, é um Deus no céu e um anjinho
branco com duas asas lindas e grades para nos proteger. E chega você e me dá o
peito e é um deleite e lá tem leite e depois papinha na colherinha eu vou
tomando na cadeirinha e até chupeta me dão na boca que coisa louca de tão
gostosa assim é a vida que a gente acha quando eclode da mãe da gente. A coisa
vai se desenrolando e vão me embalando na cadeirinha e o eu no bercinho que é
cheirosinho, cheira a talquinho e a roupinha é tão fofinha que chega fico todo
dengoso, todo bobinho. A mim doaram uma babá de nome Laurita, mulher bonita,
acarinhadora, aquela pessoa que me namorava e eu gostava do colo dela e os
peitos delas eram tão cheirosos e os alimentos que ela me dava eram tão
gostosos. E eu fui crescendo, me deliciando com aquela vida feita de amores, e
até as dores eram passageiras, pois me parecia que Deus existia e de mim cuidava
e minhas feridas ele sarava num belo passe de mágica. A vida era, então só
comédia, não era triste, não era trágica, só existia, no meu horizonte
perspectivas de seres mágicos, de mulheres divas, de festas encantos. E até
meus prantos eram passageiros, sempre consolados por belas palavras, umas
inspiradas patro-maternas, outras retiradas das escrituras, e as criaturas que
a mim cercavam só de amor tratavam e as cores do arco-iris logo me enfeitiçaram
e se encontraram nos gizes de cera e na merendeira na que eu levava para a
escolinha minha merendinha. E cantar, cantava, e dançar, dançava e até recitava
tanta poesia que eu decorava de uma coletânea em forma de livro que tinha me
sido dada pro uma amada tia. Ai! Que tempos lindos, quanta lindas coisas, quantas
doces cenas, quantas gentes boas, todas me cercavam e me prometiam que a vida
ia ser somente bela, e minha bandeira, verde e amarela era asteada às segundas
feiras no pátio da escola e eu cantava o hino e eu era menino e até o noivo da
quadrilha eu fui, e ganhei o prêmio de melhor aluno, e em um segundo me vi nas
estrelas, quantas coisas belas, quanta lembrança boa... Mas o tempo voa e
daquele piso, feito só de flores, feito só de amores, vai rolando aqui e acolá
algumas rachaduras e alguns vazamentos fazendo jorrar uma água escura... E
aparecem homens, todos engravatados, junto a seus soldados, todos bem armados,
com seu ternos bem engomados, nada amarrotados encenando um filme de guerra,
virou minha terra, na vida real. Um odor nauseabundo em fitas circula naquele
ar puro que até então eu respirava. E dava a sensação que nem era verdade, que
fosse só um sonho mal, só um pesadelo, daqueles que faz o pêlo da gente eriçar.
E a partir daí foi-se ouvindo gritos, notícias de morte, de gente forte
perseguindo meninos magricelas, de celas de cadeia, de tanta coisa feia que foi
sendo misturada no meu mundo lindo, de desconfianças na minha bonança, de
agressividades e maldade, enfim e eu fui aos poucos sendo informado que o país
estava todo dominado por um pelotão de homens fardados, ditatorizado e que o
jeito era abaixar os olhos e ficar calado pra não, de repente, terminar
implicado em alguma trama de uma intriga intrincada que eles costumavam colocar
em pé. Aí me disseram que tinha sido golpe, aí me disseram que tinha sido um
monstro da lagoa que havia emergido e andava por ali engolindo toda gente boa
que àquela maldade fosse resistindo. O pior foi que quiseram me engajar, me
rasparam a cabeça estilo Jack Demi, me tentaram incutir o amor à uniformização,
à farda, a de repente virar um guarda com a arma na mão ou da artilharia,
manobrando um canhão. Ah não, ah não, ah não! Isso não dá pra mim não. Foi aí
que eu me fiz artista, fui pegar papel de revista pra fazer colagem e tomei
coragem e dispensei a sociedade dúbia e fui pro acampamento hippie transar à
luz das estrelas e ao som do rock in roll. Foi aí que eu rejeitei aquela
condição contraditória, aquela glória abusada, aquele tudo que era nada, aquela
traição das promessas de beleza que me tinham feito no leito natal. Foi aí que
eu fui dando um jeito de me afastar de quem queria me enquadrar e foi aí também
que eu percebi que um outro mundo seria possível mas se faz impossível pois nem
todos são como eu e muitos aceitam ver a beleza da infância se desvanecer. Mas mesmo
assim eu continuo o mesmo menino que só gosta de denguinho, que só gosta de
carinho, de céu azul e de beijinho, que se afasta do que não presta que gosta
de desenhar uma pomba da paz na testa, que gosta de ser uma pessoa boa e que
voa nas azas do vento, só com o pensamento quando usa aquele bê-a-ba, aprendido
na infância, aquela capacidade de prosa poética, para lançar uma mensagem
estética e pedir a gentileza das pessoas que se tornem de más em boas, para
fazerem o mundo prestar, só na paz e no amor, no mais amor por favor, sem
fardas, sem gritos, sem malvados mitos, sem estouro de bombas, sem apitos, sem
globos nos fazendo de bobos, sem Robertos Marinhos, só amores, só carinhos, só
carinhos, só carinhos...
mini-biografia: Lúcio Mustafá
Nascido em Barbacena (MG) em 20 de maio de 1961,
passou a infância em Brasília e a juventude e vida adulta na Cidade do Recife.
Viveu entre hippies, mendigos, favelados, numa fase na qual aderiu à teologia
da libertação tendo participado do grupo de Don Helder Câmara. Viveu em Roma de
1994 aos albores do século XXI. Poeta, escritor de contos, de crônicas, artista
plástico, filólogo pelo Institutum Altioris Latinitatis Romae e filósofo pela
UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), Lúcio Mustafá, que foi um dos fundadores
do Movimento dos Realistas Urbanos, é criador da filosofia Panamorista, que se
propõe a corrigir um detalhe esquecido por todas as outras filosofias que
vieram antes dele, que é o detalhe de mostrar a possibilidade de Amor
Incondicional do Ser Humano consigo mesmo e com toda a natureza. As influências
de Lúcio Mustafá são várias e vão desde da literatura regionalista nordestina,
às teses do Círculo Linguístico de Praga, à literatura e arte italianas.
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