fotografia: Marcelo Elias
Skyleros Dermis
Bárbara Lia
Fotografia de Klee: Revista Médica Carriónica - PAUL KLEE: UN PINTOR CON ESCLERODERMIA.
Carnaval
neste país tropical. Não dançarei. Nunca vivi a folia. Eu sou das distâncias,
das meditações, da suavidade da bossa nova, da poesia de Chico Buarque e da
irreverência de Caetano Veloso. Vou passar o carnaval contigo, Klee. Por puro
amor.
Pudesse
sentar ao pé de ti nesta fotografia, neste verão inacreditável, eu te daria um
dia de belas canções. Distrairia tua dor de pele dura.
Esta
fotografia, um ano antes da tua morte, estampa em teu rosto uma dor que me
aniquila. Uma lâmina fina descasca meu coração diante de ti, que amo desde que
vi teu universo de estrelas vermelhas dentro de uma romã.
O
meu olhar foi tocado por um amor abissal na primeira vez que cortei ao meio uma
romã no quintal da infância. Foi assim nosso encontro a sós, Klee. O sumo
banhou meus dedos e estrelas saltaram diante dos meus olhos. Era da cor
vermelha o ninho das estrelas e havia ali todo o universo explodindo. O aroma,
a calda espessa entre os dedos e o sabor incomparável de estrelas entre os
dentes. Lembro que havia sol. Lembro que eu senti que algo pulsava em minhas
mãos. Lembro que pensei, pela primeira vez, que a vida era bem mais do que
supunha toda gente. Era a primeira vez que meu olhar pousava na escandalosa
assimetria da beleza, por isto, eu te amei ali. Demorei em saber que a primeira
pintura tua que eu vi foi ali, no quintal. Sempre te amei, Klee, me casaria contigo.
Comeria teus olhos grandes e profundos. Angustiados olhos de quem entende o
mundo. Sofro teu triste olhar dirigido a um ponto
cego, como quem interroga como muitas vezes eu mesma interroguei: é minha esta
dor? A mim coube esta rara escolha, entre tantas criaturas o anjo da
deformidade se volta, meio estranho e triste, ainda que cínico, lentamente
ergue os braços e aponta para nosso esqueleto sonhador, perdido no mundo sem
saber o que fazer com tanta energia de Amor.
Dizem
que é a dor que molda a Grande Arte. A dor é uma das ferramentas, apenas isto.
Sei disto ao te ver exímio gênio antes da esclerodermia.
Teu
semblante me aniquila, e choro. Tuas mãos de dedos engrossados e o teu rosto
sem ruga alguma como se fosse uma escultura. Tua dor de pele dura, de quem não
mastiga e não processa dentro o básico do que é humano. Lindo, ainda que assim,
triste. Belo homem, querido Klee. Teu terno de linho branco, tuas mãos duras a
enlaçar-se – como prece, talvez – em teu colo. Em teu mundo desabado, quanta
dor, amor! Amor! Amor!
Se
soubesses o encanto de luz que derramastes pelo mundo. Quantos poetas navegaram
na tua luz de alma. Quantos dissecaram teus anjos e tuas telas de peixes,
estrelas, estalactites desordenadas. Tua doçura nas horas com Felix – seu amado
filho – a produzir fantoches.
Há
um céu de outras estrelas depois de ti para uma infinidade de artistas. As tuas
mãos, deformadas nesta fotografia, são as mais belas do Universo. Elas criaram
rosas ao vento e todo o azul de peixes e pássaros.
Toco,
na tela, tua fotografia como quem rompe a membrana do tempo e te toca em 1939.
Quiçá por um segundo a flor dos meus dedos derrama uma sutil caricia na tua
dor.
Amo
tanto o teu rosto triste, Paul. Penso nisto, meu rosto molhado de lágrimas e o
meu pé tão deformado e caloso quanto tuas mãos.
Aferro-me
a ti, e sigo.
É só
mais um dia de dor, amor.
Tela de Paul
Klee: Rose Wind
Bárbara Lia nasceu em Assai (PR). Poeta e
Escritora. Professora de História. Publicou os livros: O sorriso de Leonardo
(Kafka edições baratas), O sal das rosas (Lumme), A última chuva (ME),
Constelação de Ossos (Vidráguas), Paraísos de Pedra (Penalux), Solidão
Calcinada (Imprensa Oficial do PR), Respirar (Ed. do autor), Forasteira
(Vidráguas), entre outros. Integra várias Antologias, entre elas: O que é
Poesia? (Confraria do Vento / Cáliban), O Melhor da Festa 3 (Festipoa), Amar -
Verbo Atemporal (Rocco), Fantasma Civil (Bienal Internacional de Curitiba), A
Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua (Maputo).
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