Para grande honra deste blogue, o poeta
Flávio Morgado, a quem agradeço antecipadamente, decidiu voltar a presentear-nos
com a sua colaboração e, desta vez, dá-nos a conhecer, através do seu olhar
crítico, um dos trabalhos do artista plástico Victor Mattina.
Persistido,
o óbvio assusta
Antes de tudo, duas considerações.
A primeira é que não significa que
um artista, seja de qual tempo for, está em plena compreensão dos mais variados
desenvolvimentos intelectuais, espirituais e tecnológicos que estão ocorrendo.
Escrever um texto que os coloque nesses termos talvez esteja mais próximo de
uma crítica feita por um historiador da arte, o que não ocupo, e além do mais,
os próprios historiadores têm prestado cada vez mais atenção às singularidades
do que nas possíveis semelhanças. Creio que os artistas não tenham essa
necessidade, têm seu próprio trabalho a fazer, pesquisas intuitivas a realizar.
Suas tintas atingem o nosso discurso, são livres. E por isso perene.
A segunda é acerca da pintura
figurativa. É importante que fique claro que o figurativo não tem a
exclusividade sobre a afetação, sua comunicação não necessariamente é a mais
direta. Não é um rosto exposto, com a sua riqueza de vigas e humanidades, que
define nosso movimento de aproximação ao quadro. Lembremos apenas de Picasso,
“Guernica” (1937): choramos com a geometria.
Dadas considerações, tentarei fazer
com que me entendam melhor.
Estou aqui para falar da pintura de
Victor Mattina, mais precisamente de seu quadro “Ibn Al-Shaykh Al-Libi”, o
rosto do terrorista líbio.
Capturado no Paquistão e entregue
aos americanos, o líbio foi torturado até o limite de inventar confissões,
ligando o ataque do dia 11 de setembro de 2001 ao Iraque, e confessar-se pelo
silêncio. Adquiriu vitiligo após as sessões de interrogatório e foi encontrado
morto anos depois em uma cela na Líbia. Mattina o conheceu por notícias, como
todos nós, seu rosto foi exposto em fotografias, como o de todos os outros
terroristas que já vimos. O que fez foi se constranger, e como pintor, nos
estender o constrangimento. Pintou exatamente o que vimos na fotografia.
O registro fotográfico já não nos
basta? Por que levá-lo, exatamente igual, ao quadro? Ou por que não o traduziu
em outra forma de expressão, talvez mais contemporânea, menos figurativa, mais
abstrata?
Talvez porque ir às tintas não seja
mesmo igual, ainda que mantenha os mesmos referenciais fotográficos. Talvez
porque um quadro abrigue-se em nós em outro espaço que não o da fotografia
jornalística. Talvez porque a abstração não seja exclusividade apenas das
formas geométricas.
Percebam o diálogo que se
estabelece entre a fotografia e a pintura, principalmente no que se refere ao
seu lugar de fala. Imaginemos a tal fotografia na quarta página do jornal que
lemos todos os dias. Agora imagine o mesmo rosto pintado e emoldurado em uma
exposição, recebendo seu merecido destaque. De repente, ali, onde estamos
muitas vezes para fugir dos jornais, ele reaparece: “Parece que você não me viu
direito, não é?”, sua voz encorpa-se naquele lugar.
Estando ali, soa um afronte. E não
é por sua técnica, sua nova interpretação, sua contemporaneidade. Não. O pintor
parece usar a pintura apenas como suporte ao alarde. E talvez para isso fosse
mesmo preciso manter a figura, recuperar nossa capacidade de se tocar pela
figura, apenas abstraindo o espanto, inerente em qualquer banalidade. “Olha, é
simples. É só isso que (não)vimos todos os dias.” Tal qual nos fosse necessário,
por exemplo, expor um cacho de banana e vê-lo apodrecer por uma semana para
vê-lo preso ao jugo da palavra morte. É apenas um cacho de fruta, está sempre
conosco, sabemos que elas com o tempo apodrecem, mas ainda assim é necessário.
Como são os que intuem nossas necessidades de espanto e silêncio. Que emolduram
o não-dito. Perene e persistente.
Meu primeiro espanto suscitou um poema e referendou
sua perenidade:
olhos
de ouvir
“Ibn Al-Shaykh Al-Libi” de
Victor Mattina
nosso
risco
pouco
difere de uma fruta
que
em mancha, borra
ferida,
marca a luta.
à
mesa,
em
tinta pústula
a
morte pinta-se
por dentro (de açúcar)
da
indiferente banana
à
tela, o pintor
em
tinta-muda
colore
o discurso
(aos
nossos olhos de ouvir)
o
silêncio desordena
o rosto
e
acusa inocência
do pintado
em
não reconhecer a morte
pelo cacho
e
na palavra um capricho
-
fora sempre confessado.
Flávio Morgado. Rio de Janeiro, 25 de Julho de 2013.
UM ponto fixo, sem vitalidade. Um estado obsessivo, sem maleabilidade emocional.
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