Mais uma vez o poeta Flávio Morgado honra-nos com a sua presença neste espaço. Fala aí poeta...
Não precisa dizer também
Pensa
o leitor. Não pode ele, nem em cartas que escreve ao autor do artigo, dizer, em
compaixão: “Eu também!”. Deixa sentir-se incapaz de ser ouvido. Como se pode
chorar à frente de um quadro de Van Gogh com nossos girassóis que o pobre
holandês jamais regou. E regou. Deixa ele se entender, como em qualquer texto,
que pensara ser escrito a ele, ali, naquele momento. Contra-assine o amor. Em
silêncio. Não precisamos dizer também. Vim antes de sua resposta.
Porque
vim antes e me desesperei com seu atraso. E tendo vindo antes, vi-me eu menino
acreditando nos livrinhos que a tia me ofertava por ouvir quieto o conto de
Crusoé. E por isso gostei de ter com as palavras. E fui buscar nos primeiros
versos lidos o amor que se aprende e se repete. Pra aprender a sofrer e
escrever a você que tardava. E olhava da janela de meu quarto alto o ponto
futuro de que falava Rimbaud; pra chegar antes e lhe avisar do estado de cada
coisa; e aprender antes os versinhos para oferecer seu primeiro poema. Não pude
esperar demais. Os outros também podiam a esperar.
Porque
andei com meus fantasmas pela rua como se o mundo se soubesse de sobreaviso, e
da sua sacada você me via gesticulando sozinho e dizia: “O poeta, mãe!”. E ouvi
atento o que dizia e me senti lúcido. E compartilhava com outras vozes antes de
mim a espera. Fiz-me contemporâneo de outros tempos e jamais estive só. E eles
sorriram me afagando os ombros quando você dobrou sua esquina de aguardo e
angústia.
Vim
antes para habitar meu vazio. E então pudesse recompor meu carinho, querida. E
me ensinar a usar o termo “dúctil” em poesia. E me reconhecer ansioso. E a
amá-la desconhecida e ver crescê-la. Até perder a fé na unidade e ter a paz no
conflito. A me obrigar a ser o outro. A desacreditar e achar benção sua
presença (in)esperada. A encenar em mim sua espera. A chegar antes, em meu
nada, e reconhecer que à luz da ausência, todo sapato já fora calçado.
Porque
treinei amor. E me senti estrangeiro em cada perna que entrava pra sentir o
corpo e saber dar. Porque não neguei uma rosa entregue sequer, mesmo ouvindo
engano. Porque cheguei a dormir à porta da amada errada que me cobriu a testa
de beijos piedosos num segredo de vocês duas (e todas as outras!). E no dia que
fui ao seu encontro, todas elas me arrumaram a roupa, pentearam meu cabelo e
disseram: “Faz tudo de novo!”. Porque deixei minha armadura na porta ao entrar
na sua casa e deixei me sangrar de passado.
Porque
não burilava ainda os meus versos e não me queria poeta como os outros, fez-me
esconder sua ausência na página em branco como recurso. Acharam estilo. E você
riu a me ver gago declamando, pois sabia de cor os versos da lacuna. E me fez
falar aos surdos como se precisasse não me deslumbrar para que pudesse ser sua
a voz que me diria que as luzes são mais sinceras no escuro. E maldisse toda
crítica ao meu segundo lugar. E quis oferecer jantares aos que me elegiam.
Porque
investiguei suas fotos e vi que amava James Dean. Comprei um quadro dele e pus
na parede bem à altura de seus olhos. Comprei uma jaqueta e fiz uma foto
fumando. Desarrumei estrategicamente meus livros ao seu olhar perspicaz. E,
antes, li Drummond em três dias para citar um verso “como quem não quer nada”.
E deixei a barba crescer, e desenhei falhas nela como a do galã de cinema que
gosta. E planejei uma leitura nua de Vinícius. E estive nu diante de mim mesmo.
Porque você me tirou de contexto - “antes, e com tal zelo, e tanto.”
Porque
a angústia aguarda a cada homem, como cada coisa está para a outra. E foi minha
pré-palavra. E abraçou a outros enquanto me via de soslaio, para eu acreditar
que era surpresa. E tornar o amor à prova como se não soubesse o antes. Pra
erguê-la como solução. Como quem fura os olhos do pássaro para o pobre cantar
melhor. E seguimos a embaralhar nosso encontro.
Porque
vim antes e tive que resguardar as palavras na presença de sua evocação. E porque
ninguém acreditou nela e riu indiferente, disse que verdade mesmo era
inventar-se a si próprio – e lhe compus. E dei ao silêncio tudo quando estamos
fora de nós. Contei historinha antes do seu sono e fiz acreditar que na minha
ausência, quando dorme, quando seu silêncio é povoado de memórias,
sorrateiramente cresço dentro de você. Como se a minha distância fosse a sua
possibilidade de me afirmar. E daí esquecesse a que veio, ao que deve. E um
vazio incomum lhe preenchesse e se visse surpreendida com uma necessidade do
absoluto. E então no momento que pensar ser útil inventar o amor, eu já serei
percebido, e farei uma carta de amor aberta, que será publicada em uma revista
portuguesa para que se sinta poeticamente única a todos os outros amores. Como
lhe assinasse anónima em todos. E aí se pegará rindo de ver tudo destino e
literatura. E eu não precisarei ouvir dizer “eu também”. Porque vim antes.
Flávio
Morgado. Rio de Janeiro, 4 de novembro de 2013.
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