sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Pensamentos literários 45 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 

45

Quando os pensamentos querem ser vistos transfiro-os para um suporte e visto-os de palavras. Essas dão os braços, umas às outras, como numa roda de dança, e fluem a seu belo prazer sem a minha intervenção.

No início, na inocência do meu desconhecimento, mal se expunham, tentava dar-lhes um sentido mais legível, mas esse processo acabava, inevitavelmente, por lhes cortar o fluxo e, o que era uma ideia sólida, diluía-se no tempo com a busca da alternativa de discurso e perdia a força da mensagem base.

Com o tempo, e a experiência, aprendi a ser paciente e comecei a esperar o fim da transição para depois, então, fazer as alterações necessárias.

É por isso que, mais do que escrever, gosto da transpiração de limar verbos, raspar pontuação, desbastar complementos, cinzelar advérbios, polir sentenças.

E se me perguntarem a razão deste trabalho eu respondo que o meu cérebro é disléxico e tem sempre muita dificuldade em estar sincronizado com os pensamentos que lê.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

No fundo do baú 9 - Emanuel Lomelino

Não existe falácia na ânsia causada por um silêncio violado pela maliciosa verve, intencionalmente impostora, que fere de garras afiadas os órgãos mais frágeis, como lâmina aquecida a perfurar matéria inflamável.

Não há remorso nas labaredas que beijam os sentidos na esperança de postular uma cauterização lenta até ao cessar dos dias, como a queda num precipício infindo.

Ninguém percebe a vontade intrínseca do sal líquido derramado como consequência do fétido ardor que um verbo pode causar quando penetra o interior imaculado – como floresta virgem - isento de mágoas e nódoas.

Ninguém entende a extensão dos danos perpetrados pela radioatividade das palavras ácidas, propositadamente regurgitadas como cuspidela traiçoeira de um réptil mal-intencionado.

Ninguém compreende o desgosto de um tímpano ferido de inverdades. Há um mórbido desejo de surdez permanente, que é herético, mas apetecido como água fresca em dia desértico.

EMANUEL LOMELINO

Ondas de paz e contentamento (excerto 18) - Maria Helena J. Pereira

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Na caminhada, o importante é estarmos completamente atentos à forma como nos movimentamos: o movimento de levantar o pé, a perna, levar o pé à frente e pousar o pé no chão. São três fases: levantar o pé, movê-lo para a frente e pousá-lo no chão.

EM - ONDAS DE PAZ E CONTENTAMENTO - MARIA HELENA J. PEREIRA - IN-FINITA

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

No fundo do baú 8 - Emanuel Lomelino

Quando os vidros e espelhos se transformam em estilhaços espalhados de modo arbitral no solo roído pelos passos de outrora, não estão sós e isolados. Ficam na companhia da caliça que já foi reboco; de alguns tufos de pelos com proveniência incerta; de heras que se atreveram a romper o betão para despontar entre as frestas de um chão que já foi imaculado; de pedaços de mosaicos quebradiços que a passagem do tempo libertou; de fragmentos de papel retalhado e amarelado pelo mofo; de poeira bafienta originária de múltiplas fontes; de lascas de madeira caídas de armários descoloridos e empenados, cujas portas estão seguras por uma única dobradiça enferrujada; de uma poça de água choca que, volta e meia, é alimentada pela goteira que o telhado esburacado deixou formar, e por onde entram aves para o descanso nocturno ou para se protegerem.

Todo este entulho de ruína e caos é cúmulo de memórias descartáveis que alguém – que pode ser plural – deixou para trás como estivesse a abandonar o mais irrelevante de si.

EMANUEL LOMELINO

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Contos que nada contam 48 (Cumplicidade nocturna) - Emanuel Lomelino

Cumplicidade nocturna

Na penumbra dos becos, os tijolos quebrados são testemunhas assíduas das vidas que se cruzam, entre pestilências, azares e necessidades, regadas a vícios e adições.

Abrem-se pernas e goelas ébrias, em rituais de praxe mundana, enquanto roedores e varejeiras, alheios aos marujos caídos e carochos ressacados, procuram as águas-furtadas de um contentor chamariz.

As sombras são armários onde os cobardes aconchegam as vertigens, os corcundas ganham linearidade, as pegas aliciam sob pressão de lâminas e chumbo, e os vasilhames dividem espaço com látex e filtros alcatroados.

No aconchego da escuridão noturna, os corretores de fumo e caldo especulam piercings, ao ritmo dos batuques abafados que saem das caves guardadas por adoradores de halteres.

Há um gato que mia, um caixote remexido, um pneu que derrapa, um copo que se estilhaça, um isqueiro que é acendido, um rosto que se ilumina, uma baforada que se cheira, um tumulto que se gera, um grito que se escuta, um vulto que tomba, uma poça que se forma, passos que fogem e o silêncio cúmplice que nada viu ou ouviu.

EMANUEL LOMELINO

O branco e a preta (excerto 24) - Pedro Sequeira de Carvalho

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Porque é que aquilo que nos dá vida é o mesmo que nos mata? Não será que aquilo que o amor faz connosco tem a ver com aquilo que ele vê dentro de nós? Se ele vê a semente da vida, ele nos faz viver, se vê a semente da morte, ele nos faz morrer. É mesmo isto! O amor é como o fogo.

EM - A BRANCO E A PRETA - PEDRO SEQUEIRA DE CARVALHO - IN-FINITA

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

No fundo do baú 7 - Emanuel Lomelino

Há uma fragrância almiscarada a perturbar as pálpebras húmidas de desencanto. Um doce odor de verde-feiticeiro que se prolonga no horizonte oculto, como a magia da claridade diurna de um dia pardacento.

Há um suave perfume de velhas orquídeas, pálidas e plácidas como hidromel requentado. Uma essência sem músculo, mas dotada de força e energia retumbante, que prende, como grilhetas enferrujadas, os sentidos desprevenidos e insonsos.

Há um aroma maduro de intensidade que se espalha na morna brisa de um verão escondido. Um bálsamo tão hipnótico como soporífero, que impregna de dúvidas a mente mais avisada – tal qual um narcótico amanhecer.

Há uma preguiçosa emanação furtiva que impede as vistas curtas e cansadas de alcançarem o mínimo vislumbre perene de uma miopia desacordada, como quem se omite, conscientemente, das funções mais mundanas – porque despreparados são os ofícios da inocência.

Há, no ar, uma pestilência omnipresente, com requintes sombrios e inoportunos, que toldam a razão sem remorso pelos danos causados, como se a visão de um espírito peregrino não conseguisse, por si só, vaguear entre curtumes e incertezas, na desafiante estrada que redemoinha a cada novo despertar.

EMANUEL LOMELINO

domingo, 26 de outubro de 2025

No fundo do baú 6 - Emanuel Lomelino

O ritmo, a cadência, a duração dos fragmentos de tempo é igual para todos, sem excepção. Ninguém vive segundos, minutos, horas, dias, semanas com maior duração do que os outros. A diferença está na forma como cada um usa o tempo; no modo como o gasta; na utilidade que lhe dá; no desaproveitamento que lhe faz.

O tempo é um só. Tão regular e contínuo, quanto obstinado e persistente na constância. O tempo é obsessivo, dono do seu nariz, pouco lhe importando a forma, o modo ou o jeito como o preenchem.

A génese das queixas sobre o tempo está no grau de prioridade que cada um, em toda a sua vitimização, dá ao tempo que lhe cabe. Por isso existem os desleixados e os organizados; os irrequietos e os cómodos; os espalhafatosos e os discretos; os inteligentes e os chico-espertos; enfim, aqueles para quem falta tempo e os outros que têm tempo de sobra. Apesar do tempo ser sempre o mesmo.

EMANUEL LOMELINO

O que me move - Miriam Müller

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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O movimento da minha vida me move. Minhas filhas, meus netos, meu marido! Um Olhar, um sorriso, o fazer valer a pena. Uma mudança na vida do outro, um olhar para dentro de mim, a realização de um sonho e o começar de novo e, de novo e, de novo... 
E você, o que te move?

EM - MULHERES QUE CRUZARAM OCEANOS - COLETÂNEA - IN-FINITA

sábado, 25 de outubro de 2025

No fundo do baú 5 - Emanuel Lomelino

O céu azul, o sol a pique e a vontade de, como o António, “estar bem onde não estou”, porque os desejos são como as miragens provocadas pelas ondas de calor – aquele bailado ondulante, no negro asfalto, que hipnotiza, mas sufoca.

Consigo refrescar a garganta seca de outras paragens, no entanto, o espírito mantém-se ressequido e ressentido pelo momento – penoso instante que se prolonga na esfera do desespero, tal qual dunas de um qualquer deserto.

A água simplesmente humedece os lábios gretados e trémulos, enquanto as rédeas do pensamento não deixam que os olhos se desembaracem da linha do horizonte desejado e distante.

Confrontado com a inevitabilidade palpável e real – antagonista da sentença do António – encolho os ombros e aceito, mais uma vez, a fatalidade de estar mal onde não quero estar, mas estou.

Que ninguém se compadeça.

EMANUEL LOMELINO

Ondas de paz e contentamento (excerto 17) - Maria Helena J. Pereira

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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É um caminhar sem preocupações, sem relógio, sem obrigação de chegar a lugar algum. É caminhar pelo prazer de caminhar, pelo prazer de me sentir viva e fazer parte da natureza que me rodeia. Às vezes há uma paragem, uma pausa nos passos, para melhor contemplar a natureza e saborear a intemporalidade e a plenitude do momento presente. Estou ali, completa, nada me falta, sou aquele momento, aquela respiração.

EM - ONDAS DE PAZ E CONTENTAMENTO - MARIA HELENA J. PEREIRA - IN-FINITA

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

No fundo do baú 4 - Emanuel Lomelino

Erradamente, supôs-se que a vida seria uma simples equação matemática. Mas alguém, fraco no domínio da álgebra e apenas conhecedor dos números inteiros, enganou-se nos cálculos por não contemplar décimas, fracções, ou raízes quadradas.

Supostamente, a vida deveria ser um segmento de recta. Todos a partirem de um ponto A para chegarem, linearmente, a um ponto B. Mas alguém, fraco em geometria, olvidou a existência de círculos, triângulos, quadrados, etc. Tampouco conhecia ângulos, senos, cossenos, tangentes, catetos e hipotenusas.

Na verdade, de nada nos serve sabermos fazer cálculos avançados ou trigonométricos porque a complexidade da vida ultrapassa todas as ciências.

Para facilitar as coisas, pensemos na vida como uma enorme espiral irregular que contradiz todas as teorias conhecidas.

As contas nunca batem certas, os ângulos estão sempre errados, e as figuras geométricas têm formas difíceis de entender ou identificar.

Bem vistas as coisas, só o ponto de partida A e o ponto de chegada B são os elementos reais da equação da vida, tudo o resto são incógnitas disformes.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

No fundo do baú 3 - Emanuel Lomelino

O tempo passa no seu ritmo célere e eu sei que não consegui dar todos os passos que devia. Por vezes ponho-me a pensar se não ocupei mal o tempo que me foi concedido. Acredito ter deixado passar algum sem lhe ter dado o devido uso. Tempo perdido e mal aproveitado.

Os dias sucedem-se a galope do tempo e eu deixo-me ficar apeado sem saber o que fazer, o que dizer, o que realizar, mantenho-me quieto no meu canto sem perceber que estou a perder o meu tempo.

Mesmo não sendo saudosista acontece-me em muitos momentos desejar que o tempo recue e me dê uma nova oportunidade de fazer algumas coisas que deixei de fazer por falta de tempo ou por não ter sabido aproveitá-lo.

E penso no tempo que deixei escapar entre os dedos, em tudo o que devia ter feito e não fiz, no que deveria ter dito e não disse, no que poderia realizar e não realizei. E assim dou por mim a pensar no tempo que se foi e esgota sem perceber que ao pensar no tempo que perdi continuo a perder tempo que podia utilizar para fazer, dizer e realizar as coisas que não faço, não digo e não realizo por falta de tempo e por não o saber aproveitar.

O mesmo é dizer que pensar no tempo que perdi continua a ser uma perda de tempo.

EMANUEL LOMELINO

O branco e a preta (excerto 23) - Pedro Sequeira de Carvalho

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Aconselhados pelo regedor, que os convocara por intermédio da polícia rural, esses homens moradores de Santo Amaro decidiram pedir ao governador Carlos Gorgulho que mandasse reabrir diversos estabelecimentos comerciais que estavam fechados há cinco dias, ou seja, desde o dia 5 de fevereiro.

EM - A BRANCO E A PRETA - PEDRO SEQUEIRA DE CARVALHO - IN-FINITA

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

No fundo do baú 2 - Emanuel Lomelino

O dia voou-se-me pelos dedos com a fúria premeditada de lâminas rombas. As mãos choraram desconforto enquanto a alma – essa eterna chaga tresmalhada – regozijou-se por não ser corpórea e celebrou a sua indiferença ao beliscar do físico.

Os segundos latejaram-me na pele; os minutos picaram o ponto; as horas cauterizaram os sulcos, infamemente, enfaixados com gaze inexistente. E ela – a alma arredada de empatia – manteve-se fiel ao seu umbigo narcisista.

A tarde sucedeu à manhã, como é habitual nestas coisas do tempo, e a cada tique-taque da ampulheta moderna mais rugas decidiram enfeitar-me a derme irritada de poeira e sedenta de tréguas. Da outra – a alma desgarrada de afinidades – nem um sopro refrescante de interesse ou sinal de afectação.

Foi apenas mais um dia que passou. O corpo ganhou umas quantas medalhas por continuar a superar etapas, enquanto a alma – vilã de si mesma – permanece na ignorância de que nada, nem ninguém, é imune à passagem do tempo e que este também se lhe aplica.

EMANUEL LOMELINO

terça-feira, 21 de outubro de 2025

No fundo do baú 1 - Emanuel Lomelino

 

Os dias tecem-se como macramé. Entrelaçam-se os nós à velocidade dos ponteiros, e a estética nunca é ditada pelo tecelão, mas sempre pelos fios do tempo. Os minutos são franjas e as horas urdem-se de forma aleatória, porém harmoniosa.

Hoje teci um dia pardo, entre refeições. Quis Aracne – deusa do ofício –, de porte altivo, como todas as divindades devem apresentar-se, que o padrão das pausas, para descansar as mãos doridas de tantas agulhadas, fosse obtuso, contudo geométrico. E os desenhos de mais um dia ficaram-me tatuados na pele.

A minha sorte é ter esta obsessão redundante pela etimologia das palavras e descobrir que, ao contrário de todos os “dejá vu” deste dia, macramé não tem origem francesa, antes árabe “migramah”, ou talvez do turco (língua aliada) “miskrama”.

Seja como for, assim que a noite se predispuser a embalar-me as escaras, enrolar-me-ei na tecelagem deste dia e dormirei na certeza de que na próxima alvorada serei artesão de outra arte qualquer.

EMANUEL LOMELINO

Alguns anos antes... (excerto) - Miriam Müller

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Sempre atuei na área administrativa. Quando tive minha primeira filha, em 1986, decidi me dedicar à maternidade. Abri um espaço em minha casa para cuidar de crianças, o que me ajudou a ganhar um dinheiro extra. Em 1990 Chegou a Nathalia, em 1992 tive a caçula, Fernanda. Três amores da minha vida. Após essa fase, entrei em sociedade em um bar noturno. Divertia-me servindo mesas, dançando lambada, samba, e, quebrando alguns copos pelo caminho, o que se tornou parte da diversão.

EM - MULHERES QUE CRUZARAM OCEANOS - COLETÂNEA - IN-FINITA

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Contos que nada contam 47 (Desabafo de um pescador) - Emanuel Lomelino

Desabafo de um pescador

Depois de ter navegado tantas marés e enfrentado os seus diferentes humores, o sal impregnou-se na pele tão intensamente que os golfinhos e as gaivotas deixaram de ser novidade. A ferocidade dos ventos, que no início era sentida como chibatadas, agora é apenas afago. Içar e recolher velas passaram a ser tarefas executadas no automático.

Já me haviam alertado para a falta de atenção que tenho prestado ao meu entorno. Não tinha dado muita importância a esse reparo, no entanto, a bem da verdade, há algum tempo deixei de demonstrar interesse nas coisas irrelevantes porque serviam apenas como motivos de distração, para ajudar a passar o tempo nas viagens entre portos.

No entanto, hoje, ao embarcar para mais uma odisseia laboral, embrulhado na minha farda de profissional camuflado e com a máscara de marujo satisfeito no rosto, decidi voltar a dar uso à minha vertente observadora e pude constatar que o céu azul continua a ser riscado pelos aviões, a espuma das ondas permanece branca e, tirando os pinguins e albatrozes, os únicos seres que continuam a destoar são os corvos, que agora são mais urbanos litorais e não se emocionam ao ver espantalhos de camisa aos quadrados que, tal como eu, andam na faina para colocar bacalhau no prato.

EMANUEL LOMELINO

Ondas de paz e contentamento (excerto 16) - Maria Helena J. Pereira

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Todavia, o meu percurso pelos caminhos da meditação, mostra-me que, para mim, é mais fácil encontrar esta sensação de totalidade, de transcendência do espaço e do tempo, de deixar de sentir os limites do corpo e perder completamente a noção do espaço e do tempo, quando entro em comunhão profunda com a natureza. É um estado de consciência de unidade, de intemporalidade.

EM - ONDAS DE PAZ E CONTENTAMENTO - MARIA HELENA J. PEREIRA - IN-FINITA

domingo, 19 de outubro de 2025

Contos que nada contam 46 (Um ultimo esforço!) - Emanuel Lomelino

Um último esforço!

Durante toda a vida, Afonso dedicou-se ao trabalho como fosse um atleta de alta competição. Estava sempre disponível para umas horas extra, colocando de lado o cansaço, ignorando as mazelas, superando a complexidade das tarefas e a pressão exercida pelas chefias, imaculadas e bem dormidas, que lhe exigiam máxima aplicação e o empenho que não entregavam.

Por mais dedicado, assíduo e competente que Afonso demonstrasse ser, pediam-lhe sempre mais um esforço, mais uma diligência, mais uma cedência, mais um sacrifício, como tivesse nascido para ser apenas um operário sem vida própria.

Durante toda a vida, dedicou-se ao trabalho com esmero e profissionalismo e agora, deitado sobre o solo gelado, sob os olhares estarrecidos dos chefes, que o observavam à distância e em silêncio, Afonso concluiu que, toda a entrega e dedicação, todas as cedências e sacrifícios, nada mais eram do que sinais do quão negligente havia sido com a sua própria vida, e apenas tinham beneficiado aqueles que, mal todos os pedaços do seu corpo quebrado fossem colocados na ambulância, seguiriam para o conforto dos seus lares e aconchego das suas famílias.

Antes de falecer, a caminho do hospital, Afonso ainda teve discernimento para um derradeiro pensamento filosófico: “por mais colectivo que seja o último esforço, ninguém verte o sangue alheio”.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 18 de outubro de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 45 - Emanuel Lomelino

11-02-2024

Quando era criança, e estava constantemente a ralar os joelhos ou a esfolar outras partes do corpo, ouvia os mais velhos dizerem que as dores, que então pouco sentia, viriam com a idade. Sempre achei muito estranho esse vaticínio e até o esqueci durante grande parte da vida.

Eis senão quando, chegado ao equador da existência secular, o corpo, qual despertador orgânico, começou a tocar e não há forma de o silenciar.

Dói caminhar, dói sentar, dói mexer, dói ficar estático, dói mover, dói tocar, dói ouvir, dói ver, dói falar, enfim, dói tudo, por tudo e mais alguma coisa, inclusive pensar.

Esta dor, que são várias dores em sequência, faz-me acreditar que, mais do que avisos, aquilo que os mais velhos faziam, quando eu era criança, era dar voz às suas próprias dores, demonstrando empatia pelas dores que hoje sinto e eles bem conheciam.

A diferença entre os dois tempos está no facto de, agora, não existirem crianças a brincar na rua e a ralar joelhos ou a esfolar outras partes do corpo. E, sobre essa dor, que desconheço, eu não sei como demonstrar empatia.

EMANUEL LOMELINO

O branco e a preta (excerto 22) - Pedro Sequeira de Carvalho

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Decidi chamar pela Arlete. Ela perscrutou pela janela e quase que caía de costas quando verificou que era eu. Não demorou e veio ter comigo totalmente apreensiva. Eu não sabia qual seria a sua reação em me ver, pelo que estava apreensivo. Depois do meu ato, ela havia saído diante de mim ainda com lágrimas nos olhos, sem dizer uma palavra.

EM - A BRANCO E A PRETA - PEDRO SEQUEIRA DE CARVALHO - IN-FINITA

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Prosas de tédio e fastio 133 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

133

Oiço o som metálico do trompete, que sai das colunas, e na mente ecoa-me um cenário distante, no tempo e no espaço, como uma lembrança acabada de nascer no improviso de Coltrane. Mas não é jazz, nem memória. É uma imagem vívida de outra era, outra realidade, talvez desejo, quem sabe sonho irrealizado.

Confuso, quedo-me, de olhos fechados, a escutar a sinuosa melodia que flutua indiferente ao impacto que me aplica, e vejo, tão nitidamente como o agora, um episódio de vida que, tenho a certeza, nunca foi meu. Existem dejá vus de momentos jamais vividos?

Abro os olhos pela urgência ofegante de voltar a mim e à realidade que me rodeia. O som dissipou-se, não sem deixar-me o corpo perturbado e trémulo.

As pernas bambas, prestes a colapsar, pedem-me que encontre um lugar para me sentar até que as palpitações regressem à normalidade. Receoso, caminho devagar até ao único banco vazio que vislumbro. Sento-me após uma caminhada eterna e tento colocar as ideias em ordem.

O coração desacelera e a lucidez é-me devolvida. Respiro fundo e, com a maior tranquilidade que o raciocínio me concede, concluo que estive, mais uma vez, à beira de uma síncope.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Devaneios sarcásticos 31 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 

31

Com o acúmulo de dias pardacentos, que não me transportam a lugar algum, vou-me vestindo de silêncios e indiferença.

Olho em redor e apenas vislumbro números circenses banhados de vulgaridade e executados por carrancas enfadonhas, como se a originalidade moderna fosse uma repetição contínua de carnavais passados, contudo, a preto e branco.

Esta matização básica, insonsa de significado ou propósito, inflige-me dotes de frivolidade e frieza, como se todo o meu ser físico fosse constituído por blocos de gelo oxigenado pelas insignificantes aragens polares.

Mas desenganem-se aqueles que veem nesta insensibilidade austera um temperamento acomodado e cego. A mudez, além de boa conselheira, permite observar a transparência de todas as matizes e intenções.

Silêncio não é sinónimo de apatia, inércia, passividade ou alheamento.

EMANUEL LOMELINO