segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Contos que nada contam 32 (Início de férias) - Emanuel Lomelino

Início de férias

Pulquéria acordou com um cadeado de remelas a prender-lhe as pálpebras e uma bigorna pousada na cabeça. Proferiu dois jargões cabeludos que lhe feriram os tímpanos como se os sinos de Notredame estivessem hospedados nos seus ouvidos. Rangeu os dentes, que lhe pareceram poluídos de poeira, e repetiu os impropérios, desta vez só em pensamento para que as badaladas não se repetissem.

Todo o corpo alertava para um forte aumento da força gravitacional que a prendia ao seu leito, onde nunca tinha sentido tamanho desconforto. Tentou mover-se em vão. Só os dedos respondiam aos comandos do seu cérebro descompensado. Por mais que tentasse, não conseguia alcançar a lucidez de raciocínio que a ajudasse a compreender as razões para uma revolta corporal tão intensa. Essa circunstância só aumentava a opressão que sentia no peito, quase no limite do necessário para a existência de respiração – uma espécie de claustrofobia (algo de que nunca padecera).

Para agravar a ansiedade, havia um silêncio absurdo que só era quebrado por uma goteira longínqua e um expressivo cansaço que a puxava, invariavelmente, para sonos picotados, dos quais despertava com a sensação de ter escutado uma voz murmurar: - Está aí alguém?

Na dúvida, entre estar presa num sonho mau ou a perder a sanidade, Pulquéria respondeu: - Estou aqui! – O esforço despendido empurrou-a, mais uma vez, para um sono forçado.

Quando voltou a despertar, tinha um pano húmido sobre o rosto e sentiu que o seu corpo flutuava aos solavancos. Gemeu e ouviu uma voz masculina, firme mas tranquilizadora: - Está tudo bem!

Ainda não sabia, mas tinha sido a única sobrevivente da derrocada da residencial, onde estava hospedada desde o início da semana. Que rica maneira de começar as férias.

EMANUEL LOMELINO

O princípio do mundo (excerto 7) - Jorge Chichorro Rodrigues

 

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Conheçam a In-Finita neste link

Era ele próprio, Antão, com a poesia que trazia dentro de si, transparente como a natureza? Pois tinham-lhe pedido que se calasse, talvez porque se parecesse demasiado com a natureza que desviava os homens da sua sina, trazida do Velho Mundo, de serem opacos e duros como pedras... Apesar de tudo, ninguém podia mantê-lo eternamente calado pois o destino, como a natureza, eram seus aliados, e uma visão miraculosa fê-lo gritar: «Terra! Terra à vista! Eis o princípio de um novo mundo!»

EM - O PRINCÍPIO DO MUNDO - JORGE CHICHORRO RODRIGUES - IN-FINITA

domingo, 3 de novembro de 2024

Lomelinices 43 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

43

Recomeçar, uma e outra vez, não traz mal algum ao mundo. Voltar à estaca zero e tentar fazer melhor faz parte do jogo da vida. O desafio maior é aprender a jogar à medida que avançamos, passo a passo, com um objectivo fixo em mente. Reiniciar a caminhada é uma nova oportunidade de reconhecer erros e procurar melhores soluções. Tenta-se e volta-se a tentar, as vezes que forem necessárias, e cada nova tentativa significa resiliência, perseverança, combatividade. Mantendo a mente focada, pouco importa o cansaço físico.

Os chavões são claros e fáceis de entender. O problema é colocar em prática toda a extensão teórica. Sim, o corpo fica cansado, mas recupera. Já a mente. Por mais blindada que seja, não há como evitar a perturbação das nódoas de fracasso que se acumulam e acabam por, paulatinamente, manchar o ânimo. A vontade pode ser férrea, mas o ferro enferruja e, mais dia menos dia, acaba por partir. E essa noção, por si só, já é abalo suficiente.

Egoisticamente, o que nos salva é sabermos que há, por aí, alguém bem mais abalado pela vida.

EMANUEL LOMELINO

Prisioneira em liberdade (excerto 1) - Maria Antonieta Oliveira

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O quarto era exíguo, não teria mais que cinco metros quadrados. Não tinha porta nem janela, com fecho e chave, era separado por uma cortina de pano, pesada, de um corredor estreito que dava acesso a um outro quarto com janela de (sacada) varanda para a Rua de Santo António à Sé. Nesse corredor existia um lavatório de ferro, pintado de branco, com um balde por baixo, onde caia a água suja; ao lado o jarro também ele de ferro, com água limpa, para ser usada em lavagens diversas do corpo. Mais ao lado uma espécie de bidé com armação de ferro e interior de esmalte, tudo em branco. Existia também uma espécie de mala/arca, onde a mãe guardava roupas.

EM - PRISIONEIRA EM LIBERDADE - MARIA ANTONIETA OLIVEIRA - IN-FINITA

sábado, 2 de novembro de 2024

Lomelinices 42 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

42

As noites são vazias de tudo. Vazias de sono, de pensamentos, de sons, de cor. Apenas vácuo como se a vida estivesse em piloto automático, mas sem rumo definido nem propósito.

Abraço o silêncio e a almofada sem motivo concreto ou necessidade aparente. Apenas um gesto instintivo sem sentido, como todos os movimentos indistintos que faço. Talvez sejam espasmos do ser autómato que agora sou.

Deixo-me ficar esticado e imóvel sobre a cama à espera de que o desconforto ou o tédio me belisquem. Apenas fico e aguardo que o balão encha e a paciência, cujo paradeiro desconheço, estoire e preencha o nada que me envolve.

Nada. Absolutamente nada. Até que o primeiro raio de sol me lembra que tenho os olhos abertos e chegou o tempo de, simplesmente, fazer-me ao dia e deixar a vida carregar-me neste sonambulismo.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Epístolas sem retorno 19 - Emanuel Lomelino

Eça de Queiroz

Prezado José Maria,

Uma das maravilhas desta era digital é a possibilidade de ter, ao alcance de um dedo no teclado, e em tempo real, acesso a qualquer coisa, de qualquer ponto do mundo.

Neste contexto, volta e meia dou por mim a acompanhar, via internet, uma rubrica literária transmitida pela rádio espanhola (Cadena SER), que me permite descobrir alguns autores ou alargar o meu conhecimento sobre outros, cujas obras já tive oportunidade de ler.

A razão desta missiva nasceu após ouvir os surpreendentes sessenta minutos que aquela estação de rádio lhe dedicou recentemente. Não pela escolha do autor, porque sei da sua relevância e influência noutras latitudes (comprovadas pelas inúmeras traduções do seu espólio), mas pela forma como dissecaram e, acima de tudo, avaliaram a importância do romance O Primo Basílio na história da literatura universal, a par de Os Maias, O Crime Do Padre Amaro, A Tragédia Da Rua Das Flores e A Ilustre Casa De Ramires.

Eu não precisava deste testemunho, vindo de terras hispânicas, para justificar a razão pela qual tenho toda a obra queirosiana na secção dos clássicos da literatura.

Com vénia

Emanuel Lomelino