quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Diário do absurdo e aleatório 51 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

51

Apesar de ter vivido no seio de uma família que nunca lhe faltou com amor e lhe deu todo o conforto e privilégios que o dinheiro proporciona, Adérito nunca se sentiu completamente feliz e isso dava-lhe uma enorme insegurança. Mesmo quando os astros pareciam estar alinhados a seu favor, havia um desconforto que o incomodava e a sensação de que as pessoas só se aproximavam dele pela riqueza que herdaria e nunca ninguém o havia amado de verdade.

Somente duas semanas após a morte dos pais, durante a leitura do testamento, é que Adérito descobriu a razão de sentir, desde que se lembrava, aquela angústia sufocante. Era filho adotivo! Como fosse pouco ser agredido por essa revelação, que esteve em segredo durante cinquenta anos, ainda foi esbofeteado com a existência de um irmão gémeo.

Munido de todas as informações, e capacidade financeira ilimitada, não foi difícil encontrar aquele que seria, muito provavelmente, a única hipótese de eliminar a tristeza que o consumia desde sempre. Pelo menos poderia atenuar as dores mais recentes.

O encontro dos irmãos, separados à nascença, foi emotivo e, tal como previsto, aplacou o desconforto sentido toda a vida.

Adérito ouviu o irmão, Zeferino, admitir que sabia da sua existência e que, apesar da extrema pobreza em que vivera, desde o berço, e da ausência de informações sobre o seu paradeiro, nunca perdeu a esperança de encontrá-lo e que esse reencontro era a última ambição que tinha na vida.

Mais surpreendente para Adérito foi ver que o seu irmão, mesmo com todas as dificuldades e privações, revelava-se um homem feliz e seguro.

Ao contrário de si, que andou sempre de caso em caso sem conseguir encontrar quem lhe transmitisse a confiança necessária para assentar de vez e prolongar a sua existência, Zeferino casou com Constância, tão humilde quanto ele, que o abençoou com a descoberta do amor incondicional e verdadeiro ao dar-lhe cinco filhos, que cuidaram e educaram dentro das possibilidades que o sacrifício de ambos permitiu.

Vinte anos mais tarde, no seu leito de morte, Adérito confessou ter feito as pazes com a vida quando foi abraçado, acarinhado e amado pela humildade da família. que o destino lhe escondera durante meio século, como se tivesse feito parte dela desde sempre.

Morreu com um sorriso nos lábios e uma pequena lágrima de felicidade a escorrer-lhe no canto do olho.

EMANUEL LOMELINO

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