quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Ocarina e Oboé (excerto) - CARLOS ARINTO


(cana verde de sopro, flauta de pã, pífaro e gaita de beiços)

– Que horas são?
– Ah! Ainda temos tempo.
– O que queres dizer com isso? Ignorar a minha pergunta e não me dizer as horas?
– Absolutamente
– Isso quer dizer o quê?
– Não quer dizer nada. Se soubesses o sacrifício que faço em estar aqui respondendo a perguntas idiotas…
– Estás-me a chamar idiota?
– É, como vês? Ser idiota é uma qualidade dos dias de hoje. Ser idiota faz parte do percurso… Limito-me a acompanhar a natureza. Qual natureza, adivinho que vais perguntar?
– Pois, não vou!
– Está bem, não perguntes…
Estamos ébrios com o Poder. Fomos eleitos e agora descansamos da orgia. Beijo o teu corpo que me sabe a “papéis de música” que é ao que sabem todas as ressacas.
O mal de ressacar é que quero sempre mais do teu corpo, dos eleitores, dos artistas, das vinganças e das coisas que ainda não sabemos que existem.
Pandemia nunca mais: vou assinar o decreto. Eu determino. Devo ter adormecido porque a perna começou a formigar. Tenho de fazer mais exercício.
– Diz-me, somos nós que estamos aqui?
– Sim, somos o planeta a galáxia ou as espumas de lava, poeiras e gazes e também seres moleculares, microscópicos ou infinitamente esporos e amibas – embora possam parecer “caravelas” ou orcas - que não vemos. Somos nós mesmos e outros e muitos e levíticas imagens sem peso, apenas ensaios, perfumes, cheiros. Cheiros a nevoeiros. Não, não façam tatuagens, elas escorregarão pela nudez dos mármores e se elevação dos templos até deixarem de existir, como colapsos e desmoronamentos sem fim, numa inversão da gravidade. A terra nunca será plana.
– Não compreendo.
– Não, ninguém pode compreender.
Cruzamo-nos num abraço sôfrego. Despenteamo-nos com os corpos transpirados. As nossas bocas unem-se, estamos conectados e somos um todo que se deseja, quer e recria.
A vida segue adiante.
Transplantamo-nos para uma sombra onde as intempéries não existem, aqui verdejam frescuras ondulantes que vibram.
Depois o tempo recomeça.
Sinto os teus seios pequenos contra o meu corpo, e és tu, outra vez. Sinto a curva do ventre e do vento que adorna a tua pele – na perpendicular das minhas mãos, na teia das minhas velas e remoinhos - como um linho engomado na diáfana fluidez da seda que esvoaça.

EM - ECOS PORTUGAL - COLECTÂNEA - IN-FINITA 

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