quinta-feira, 14 de outubro de 2021

O inverno - ROSÁRIO PEDROSO

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A antiquíssima dor no peito voltou. Laura passa agora um inverno gélido, pessimista, em que o diálogo telefónico e online são esgotantes. Uma frustração muito antiga presentifica-se: um desencontro absoluto em relação a todos os entes assombra-lhe a saúde. Aquela sensação de fragilidade cavava fundo uma saudade dos perfumados laranjais da Andaluzia. Contudo, ciclópico, um tempo verdasco, mas simbólico, invade tudo: os afetos tardios, os negócios, o dia a dia. A isolação transforma-se aos poucos numa ferida aberta, num pus tóxico. Nem os exercícios de Chi-Kung aprendidos com a amiga, Luna, estavam a ser suficientes para travar a dor. Luna Azure era uma doce criatura de voz melódica, quando nasceu, numa noite de lua nova, a mãe pediu ao pai que a menina se chamasse Luna porque eram assustadoras as noites transmontanas de lua nova. Luna foi desejo de lua para aquela mãe, sozinha, sem falar português, no hospital de Mirandela. Agora, Luna, com o país em situação de catástrofe, tinha-se distanciado. Todos eram desconhecidos. Laura Lírio volta ao versilibrismo, talento que tinha abandonado depois do afastamento de Sandro Greco, uma paixão exótica. Mas eis que a inspiração volta, é uma pulsão biológica, aflora junto das nascentes. Mesmo em dia de tempestade, procura nascentes de terra negra, lameiros, vegetação selvagem para se tranquilizar e inspirar. Uns dizem que é uma poeta simbolista, outros surrealista, outros abstracionista. Laura sente-se estrangeira, julga modelar sensações repentinas, transformar em palavras emoções em fuga. Como mulher sente-se traída por algumas mulheres, do fascismo, ficara na sociedade portuguesa o toque violento dos controleiros e controleiras, o sadismo de dominar o outro pelas ideias, pelo modus vivendi, a maquilhagem, os cremes, a roupa, o comportamento familiar e social, uma mania de grandeza imperial. Os homens parecem agir do mesmo modo, mas com uma discrição astuta, quase impercetível para espíritos distraídos. Intuitivamente, apercebe-se de uma estranheza entre os humanos. A amizade esvazia-se aos poucos de afeto e torna-se uma forma de modelar e fiscalizar o outro. Agora que Portugal é considerado no “The Economist” como uma democracia com falhas, sente-se feliz com o regresso a Santa Cruz de Alexandro Marino, depois da semana de alta-costura em Paris, cujos desfiles foram mostrados na sua maior parte em formato digital. Está fascinado com a coleção de Giambattista Valli, um convite à introspeção. Finalmente, tem a companhia de alguém civilizado. Alexandro instala-se na Praia Azul, é amigo do dono, o hotel permanece fechado, emprestou-lhe um apartamento.
Com as livrarias encerradas e a proibição de comprar livros nos supermercados, pede alguns livros a Laura. Não pode andar sempre a viajar carregado de livros, para além disso, gosta de passear pelas livrarias dos países que visita, conhecer as novidades. Depois doa os livros. Com todas aquelas tempestades de fevereiro, somente consegue ler poesia. Conheceram-se no Norte e tornaram-se confidentes, mas a amizade é cheia de sobressaltos, sustos, interrupções: primeiro uma morgada minhota, depois a Gi, com o encanto da fotografia e sempre a correr mundo. Acontece que por influência da pandemia os trabalhos da Gi perderam luz e sinceridade. Alexandro procura agora o diálogo com as velhas amizades. Lê a obra Doze Mapas de Mário Cláudio, oferecido por Laura, repete algumas frases do eminente poeta, “o que me interessa no convívio com os outros é aquilo a que poderia chamar a alma dos outros. E essa alma tem de ser escavada, ou ficamo-nos pela superficialidade, e eu faço isso através da escrita”, que recolheu na internet, diz que gosta de ir ao “Citador”, contudo declara que ainda não se sente preparado para começar a escrever, tem apenas pequenas anotações num pequenino bloco que o acompanha, mas tem esse projeto, o projeto de escrever um grande romance. Já Laura dedica-se exclusivamente à escrita automática, queixa-se da família que considera a sua poesia absurda, até paranoica. Então, na tentativa de a encorajar, Alessandro lê-lhe um aforismo de Teixeira de Pascoaes, que tinha anotado no bloco, “Poeta quer dizer Possesso. Não devemos confundir os artistas do verso com os criadores de Poesia. Os primeiros interessam apenas à literatura, ao passo que os segundos têm um interesse vital e universal, como uma flor ou uma estrela”. Um dia voltariam a Amarante, parariam junto à casa do poeta e voltariam a debater o seu saudosismo em homenagem ao brilhante conversador. Não há onde comprar um café, é proibido, então vão até à zona da praia do Barril, entram no Supermercado Amanhecer e compram duas águas tónicas, vão para junto do porto deserto e brindam a uma amizade para sempre, pois, concluem, que a amizade salva das pandemias enraizadas em todos os quotidianos.

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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