sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Quatro bocas - IZILDA BICHARA

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Quatro e meia da manhã. Valdete se levanta sem fazer barulho, veste a roupa e confere o endereço que anotou num papel. Antes de sair, dá uma olhada nos filhos adormecidos. Kauã, de dezoito anos, está estirado no sofá. Desde que ficou cego com o tiro de borracha no olho esquerdo, nunca mais foi o mesmo. Era feliz como motoboy. Ajudava nas despesas da casa e ainda sobrava para uma besteirinha. O tiro acertou muito mais que o olho de Kauã. Matou sua alegria. Perdeu o emprego, a namorada e a confiança na vida. Valdete aperta os olhos e volta-se para Kleber, de nove anos, que dorme abraçado com Kleiton, de cinco. Keiti é ainda um bebê, de menos de dois anos, e continua adormecida no colchão da mãe. Valdete sorri. A cada dia, a pequena está mais parecida com o pai, morto com uma bala perdida.
Valdete sai sem trancar a porta. Sabe que kauã vai passar o dia todo largado no sofá e que Kleber vai se levantar, preparar um leite para os irmãos, deixar Keiti com dona Cida, Kleiton na creche e só então vai para a escola. Kleber é um menino de ouro, pensa, mas esse pensamento a remete imediatamente ao sumiço do anel de dona Suzana. A consciência está limpa, mas de que adianta? Ser injustiçada dói mais do que uma dor física. Nunca tirou um grampo sequer da casa de nenhuma patroa. Não podia ter sido tão humilhada e destratada.
Às sete em ponto chega ao endereço marcado no papel, depois de uma longa trajetória. É uma casa de alto padrão, onde uma arrumadeira lhe diz que Dona Marta só se levanta às dez, mas pediu que já fizesse o almoço para testar a vaga de cozinheira. Valdete se esmera no fogão.
Por volta das onze, uma senhora alta, de uns setenta anos, entra na cozinha e lhe diz: não para de cozinhar, não. Vai me dizendo seu nome, onde mora, sua experiência como cozinheira, se tem documentos, antecedentes criminais, essas coisas. Gosto de me cercar de gente honesta. Já chega de roubalheira neste país, não é? Antes, havia ordem e progresso no Brasil. E muita segurança, viu? A gente tinha orgulho de ser brasileiro. Quando me casei, minha lua de mel foi em Paris. Fomos num belo avião. Saudade desse tempo em que só gente de bem viajava de avião. Você já viajou de avião, Nilzete? Não? Ainda bem. Isso mostra que você sabe o seu lugar. Hoje, qualquer empregadinha tá andando de avião. Não fazem mais distinção entre gente de classe e povão. É por isso que eu digo, este país bem que estava precisando de uma mão forte.
Enquanto discursa, Dona Marta destampa as panelas e prova a comida que está sendo feita. Mete os dedos no creme de espinafre e os lambe com gosto. Valdete tem vontade de sair dali correndo, mas se contém. Precisa daquele emprego. Tem quatro bocas para sustentar.
Dona Marta reclama do tempero e da apresentação da salada. Diz, então, que Valdete fará uma experiência de seis meses sem registro e que ela, mulata bonita, não venha a se engraçar com seu filho, nem com seus convidados, pois os jantares naquela casa são frequentes. Avisa que, nesses dias, Valdete deve ficar à disposição até o último convidado se retirar. A moça explica que isso para ela é difícil, pois mora longe e tem filhos pequenos.
Dona Marta começa a gritar: Ô, raça de gente preguiçosa! Vocês reclamam da vida, mas não querem nada com o batente! Se não pode ficar quando eu preciso, então pode pegar suas coisas e dar o fora daqui. E nem ouse me responder. Não sou obrigada a suportar a sua voz. Fora daqui!
Valdete se troca rapidamente no banheiro dos fundos e sai dali desorientada. Sem trabalho, não tem como alimentar seus filhos. No caminho de volta, encontra Fátima, antiga vizinha que agora trabalha para o Claudinei. A moça lhe diz sorridente: Grana fácil. É só não marcar bobeira e entregar umas encomendas pra uns bacanas, nos lugares marcados. Quando rola sexo, a grana aumenta. E você, com seus trinta e cinco anos, ainda está inteirona, Val!
Quatro e meia da tarde. Valdete chora ao pensar nos filhos. Confere, então, no papelzinho que tira da bolsa, o endereço de Claudinei.

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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