segunda-feira, 13 de setembro de 2021

O último suspiro do mouro - LEA VIEIRA

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“E agora o senhor não mais haverá de se admirar de que a lembrança desse incidente na Acrópole me tenha perturbado tantas vezes, depois que envelheci (...)”
“Um distúrbio de memória na Acrópole”, Freud (1936)

Minha amiga,
Tendo retornado de viagem há alguns dias, a contragosto, mas de todo modo inteira, não quis perder a oportunidade de compartilhar com você minhas primeiras e segundas impressões sobre lugares e paisagens que têm, desde então, assediado minha mente, em sono e em vigília.
De tudo que vi, posso dar conta com alguns comentários e muitas fotos, exceto por uma imagem: diante do penhasco de Ronda, meu coração parou! Hélios deteve sua carruagem no céu para a luz demorar-se sobre a enorme ferida na terra, resquício sobrenatural de alguma guerra de titãs, ou de uma chuva de meteoros; é quase certo que alguns dinossauros foram engolidos ali, quando o chão se abriu até o fundo do vale, dividindo o mundo conhecido em dois, para a eternidade. No fundo do penhasco corre um rio que muito bem podia ser o Aqueronte (o inferno está em toda parte), mas é Andaluzia, e o rio é o Guadalevin.
E assim, pela segunda vez na vida, enterrei meu coração na beira de um rio e, o que é muito perturbador, sem nova chance de resgate. Na vez anterior, passou-se uma geração antes que pudesse tê-lo de volta; não tenho mais tanto tempo, minha vela queima muito rápido agora. Na tentativa de aplacar minha angústia, retornei ao meu querido Freud: ali mesmo, na beira da ravina, lembrei do seu relato de uma experiência emocional desagradável ao realizar seu sonho de visitar Atenas. Isso era do que me lembrava e, de fato, parece ter ocorrido. Mas o meu conforto veio daquilo que eu não recordava: trata se, na verdade, de uma carta aberta de felicitações para um amigo septuagenário, no momento em que o próprio Freud contava com 80 anos e se permitia, depois de uma breve saudação inicial, mergulhar em considerações um tanto amargas sobre incredulidade, negação, pais e, inevitável, sobre velhice.
Na particular simetria que se apresentou para mim, há exatos 80 anos Freud octogenário evocava, numa pirueta associativa que ele próprio chama de pausa momentânea no texto, a história do último rei mouro da Espanha, que recusou a mensagem de que sua querida Alhambra tinha sido tomada pelos católicos simplesmente queimando a carta e matando o mensageiro. Boabdil não terá sido o primeiro a usar o expediente, naturalmente. Ocorre que eu tinha partido de Granada, no dia anterior à epifania em Ronda, com um pensamento recorrente, algo que li no Mirador San Nicolas (donde se tem uma visão fantástica de Alhambra), uma outra história pouco lisonjeira e muito tocante sobre “o último suspiro do mouro”, o mesmíssimo rei mouro: a caminho do exílio, Boabdil olha mais uma vez para a cidade, e chora; sua mãe não perdoa: “chora como uma mulher o que não soubeste defender como um homem”! A frase cortante, além de suscitar várias fantasias sobre o comportamento de mães muçulmanas no século XV, parece de resto ser bastante conhecida na região e, afinal, eu vinha de Granada, mas Freud... não!
Dessa forma, minha amiga, eu que não sou dada a superstições e careço de grande imaginação, fui levada a acreditar que a carta de Freud, com seu conteúdo absolutamente original e aparentemente despropositado, foi deixada pública e repleta de pistas com o propósito de encantar futuras gerações que, eventualmente, ainda dominassem seu código. Não sei se me entende, gente comum, infeliz a seu modo, que sente angústia, lê e busca consolo em velhos livros, que falam sobre coisas velhas e duradouras, como é a Acrópole, como é Alhambra, como é o inesquecível rei mouro de coração partido, como é o desejo humano de conhecer e viajar, como é o medo humano de não mais poder viajar e de morrer, como era o Freud octagenário há 80 anos, como já sou eu também, velha e duradoura o bastante para reencontrar num velho livro algum sentido humano compartilhado para uma experiência que, de outra forma, não teria sentido algum.
São Paulo, 23 de julho de 2016.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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