domingo, 12 de setembro de 2021

O construtor de janelas - LAURINDA RODRIGUES

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Ludovina abriu a janela e respirou fundo.
Mesmo em frente, na linha do horizonte, subia o sol, numa mancha laranja.
O ar estava fresco, transparente e o cheiro da terra, depois de dormida com o orvalho, resplandecia.
Ludovina sentiu-se plena até às lágrimas: as que a aragem lhe trazia à face; as que a face lhe levava à aragem.
Assim era a construção do mundo, a construção de um dia, a construção do tempo.
Ludovina lembrava, na memória do corpo, sensações semelhantes ou iguais, mas sabia, naquele exato momento, que estas eram únicas e irreprodutíveis. E, todavia, eram totais.
Agasalhou-se e veio para a rua.
Nas pedras do pátio, iniciou a cerimónia: virou as mãos para o sol, palmas abertas erguendo-se com a mancha alaranjada; saltitando cada vez mais alto, até ao limite da evidência da luz.
Sentiu um cansaço de uma energia não recuperada pelos desvios em pequenos carreiros, mas a estremecedora convicção da dádiva do sol, união de filamentos luminosos ao centro da terra.
Ludovina regressou para a moldura da janela e sentou-se: o pensamento parado, o corpo parado, sem objetivos, sem perspetivas.
Era tal qual o caminho que levava ao sol. Livre, disponível. Fizessem o que fizessem as cabeças dos homens, estava lá, na moldura da janela de madeira, pintada de vermelho sangue, pequena, pesada, forte; a janela de um alentejo falado, vivido fugazmente, mais pelas palavras do que pelas emoções.
E não era emoção que transparecia. Era como que vazio, totalmente transparente e incolor de cristais prismáticos de luz, na convergência para um ponto não definido em qualquer ponto.
Ludovina estava muito fresca, tão fresca como a aragem, tão fresca como o orvalho e não fazia parte da aragem, não fazia parte do orvalho: era assim como uma entidade planadora, desintegrada de todo o corpóreo, até dela própria.
Ludovina olhou e viu o seu cão que lhe lambia os pés ainda descalços: soube que ele tinha fome; Ludovina tinha fome: sentiu vontade de comunicar com a realidade da casa.
O sol estava, agora, perfeitamente identificado no céu.
Ludovina fechou a janela.

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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